Um museu provocador destaca a arte africana no cenário global

Museu Zeitz de Arte Contemporânea se torna a resposta africana ao Tate Modern

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Por Roslyn Sulcas
Atualização:

CIDADE DO CABO - O Museu Zeitz de Arte Contemporânea da África, inaugurado na Cidade do Cabo no mês passado em um silo de grãos revitalizado que atrai cerca de três mil visitantes por dia, parece prestes a assumir o papel de instituição de artes dominante no continente.

Fachada do Zeitz Museum, na Cidade do Cabo Foto: Iwan Baan/The New York Times

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Já gera controvérsia, é alvo de pontos de vista competitivos e contraditórios. O Zeitz Mocaa, como se sabe, foi saudado como a “resposta da África ao Tate Modern” e “um novo capítulo na história da África do Sul”. O arcebispo Desmond Tutu, em uma rara presença na cerimônia de abertura, simulou estar recebendo um telefonema do ex-presidente Nelson Mandela, do céu: “Sim!”, Mandela disse a ele. “É por isso que lutávamos!”

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Ao mesmo tempo, os devotos da arte, tanto da África como do exterior, criticaram o museu por ser uma emulação elitista de instituições ocidentais, desvinculada das comunidades locais.

As duas visões têm certa validade.

O novo museu de US$ 38 milhões abriga a coleção de Jochen Zeitz, filantropo nascido na Alemanha e ex-principal executivo da Puma SE, que vem reunindo trabalhos contemporâneos da África e de sua diáspora desde 2008. O prédio, com seu exterior de concreto simples e janelas de vidro multifacetado dá poucas pistas sobre o interior espetacular em forma de catedral, com 80 galerias de cubos brancos em nove andares de cada lado.

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Mas há quem questione as grandes somas gastas em um museu privado, enquanto os museus públicos do país ficam à mingua, bem como sua localização, em um dos terrenos mais caros do setor imobiliário na África do Sul - o extenso complexo V&A Waterfront de lojas e restaurantes, muito visitado por turistas.

O que vê no interior é a representação do gosto de um homem em arte contemporânea - embora esse homem não seja Zeitz. É Mark Coetzee, o curador nascido na Cidade do Cabo, que Zeitz contratou para ajudá-lo a formar a coleção, e que agora é o principal executivo e diretor do museu.

Dirigindo os primeiros visitantes em uma turnê ainda usando capacetes, pelo Zeitz Mocaa na primavera, o Sr. Coetzee explicou que sua missão é “contemporânea e vanguardista”, portanto todo o trabalho foi feito depois de 2000.” Ele acrescentou que o foco era de grande escala e profundidade: “a única regra que estabelecemos foi comprar conjuntos de trabalho. Com bem poucas exceções, reunimos 40, 50, 60 peças de cada artista cujo trabalho selecionamos”.

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Uma amostragem pode ser vista na exposição de inauguração, All Things Being Equal (“Todas as coisas vistas de forma igualitária”), que é basicamente uma demonstração de algumas das atrações principais do museu: Wangechi Mutu (Quênia), Zanele Muholi (África do Sul), Chris Ofili (Reino Unido), Glenn Ligon (Estados Unidos) e El Anatsui (Gana), cujas instalações arrojadas - feitas de tampas de garrafas, alumínio, cobre e outros materiais descartados pelo comércio – fazem uma alusão às cicatrizes da história colonial de África.

Coetzee, de 53 anos, também já apresentou retrospectivas do início de carreira do artista/ativista Kudzanai Chiurai do Zimbábue e de Nandipha Mntambo, da África do Sul, conhecido por suas figuras humanas cobertas de couro de vaca, moldadas em seu próprio corpo.

Recentemente, num café da manhã em Londres, onde Zeitz vive parte do ano, ele disse ter conhecido Coetzee em Miami, em 2007, quando o curador trabalhava para a Colecção Família Rubell. A Puma SE patrocinou a mostra de Coetzee, 30 Americanos, com trabalhos de artistas afro-americanos das três últimas décadas. “Comemos uma pizza e perguntei a ele por que os artistas da África são tão pouco representados e por que não há uma instituição cultural significativa na África. E disse a ele, por que nós não fazemos isso?”

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Um ano depois, eles começaram a montar uma coleção de arte africana contemporânea. “Esta não é uma coleção privada que comprei para mim”, disse Zeitz, de 54 anos, que mais se parece com um amarrotado personagem de videogames sobre caçadas que um CEO. “Nós coletamos em uma escala que não seria feita em particular, pois sempre partimos da ideia de que teríamos um lugar na África para exibir a arte”.

Ao ser questionado se tinha um orçamento, Zeitz riu. “Eu ainda precisaria ter meios de pagar minhas contas”, disse. “Mas não, não havia orçamento em mente”.

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A missão, segundo Coetzee, foi permitir que os africanos contassem sua própria história. Ele reconhece que ainda há grandes lacunas na coleção. “Existem países e regiões sem escolas de arte, nenhuma infraestrutura e isso é difícil”, disse.

Acrescentou que outro dos objetivos era tornar o trabalho acessível para as pessoas que não costumavam ver arte, com entrada gratuita para visitantes menores de 18 anos e, todas quartas-feiras, para qualquer pessoa com um passaporte africano.

“Nossos museus públicos, e ainda que a culpa não seja deles - não têm dinheiro - não são acessíveis, mesmo depois do fim do apartheid”, disse Coetzee. “O que resolvemos fazer foi pensar com muito cuidado sobre o trabalho que é experimental e sugestivo e realmente envolve um amplo espectro da sociedade. Acredito que seja possível fazer isso e ainda apresentar um trabalho brilhante”.

Mesmo assim, é palpável a tensão entre os objetivos filantrópicos dos fundadores e a realidade corporativa. O museu fica no recém-desenvolvido distrito de silos, na zona portuária, que ostenta blocos de apartamentos, escritórios e lojas. Um hotel de luxo (não projetado por Heatherwick) fica acima do próprio museu. Como observou o The Guardian: “para uma instituição que tenta ser aberta e acessível a todos, o seu vizinho de cima é uma dolorosa recordação da extrema desigualdade que ainda atormenta esta cidade - um playground de luxo para alguns, uma favela empobrecida para os outros - mais de duas décadas depois do apartheid ".

Coetzee e Zeitz procuraram áreas em outras partes da África para o seu museu. Quando David Green, o principal executivo do V&A Waterfront, chegou até eles, “tudo estava realmente pronto: eles tinham um prédio e um arquiteto; nós tínhamos uma coleção”, disse Coetzee.

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A maioria dos artistas e galeristas contatados para este artigo relutaram em expressar suas reservas sobre o museu, dizendo que havia muito em jogo. “Os artistas fazem suas críticas em particular, mas dizendo: como faço para levar o meu trabalho ao museu?”, disse Sue Williamson, uma artista da Cidade do Cabo que atualmente faz parte de um grupo que expõe na Axis Gallery, em Nova York.

Coetzee disse que ele e Zeitz fizeram consultas “extensivamente” com os curadores do museu em todo o mundo, enquanto montavam sua coleção e tentaram instalar protocolos o mais rápido possível. “Temos conselhos de administração e consultores, comitês de governança, 20 curadores na equipe e duas comissões de aquisição”. Acrescentou: “se eu tenho influência? Espero que sim. Mas eu não tenho a palavra final sobre o que deve ser comprado”.

Mas mesmo quando as questões entram em ebulição, a reação até agora tem sido bem positiva. “Eu minimizo as críticas com uma política de identidade reducionista”, disse Ashraf Jamal, ex-editor da revista Art Africa, referindo-se a uma tendência para feiras de arte afro centradas para enfatizar o fortalecimento do negro em vez de se concentrar na qualidade do trabalho.

"É um museu internacional, não é uma preocupação provinciana ou nacional, mas as pessoas perdem isso de vista”, acrescentou Jamal. "Neste momento, a coleção precisa de mais pinturas e mais esculturas; é dominada por fotografia e vídeo-arte, mas essa é uma iniciativa tão jovem. É um fenômeno globalmente importante e uma tentativa profunda e sincera de colocar a estética africana no cenário global”. / Tradução de Claudia Bozzo

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