Um plano de vôo para o País

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Por Flavia Tavares
Atualização:

O momento é de desalento. Além da comoção com a tragédia do vôo 3054 da TAM, cenas de desespero nos aeroportos do País dão a dimensão do sentimento de desamparo de quem tenta exercer o simples direito de ir e vir. Consumidores e funcionários das empresas aéreas se enfrentam nos balcões de check-in, a ineficiência se alastra e a indignação dos cidadãos se transforma em humilhação. Em Brasília, porém, manobras políticas decolam sem operação-padrão e o jogo de empurra das responsabilidades já começou. Hoje parecem viver em planetas distintos e remotos o viajante que dorme no chão do aeroporto e o político que dribla crises anunciadas. São personagens que não se falam. Vivem como estranhos num País sem projeto de futuro. Preocupado com esse estado de coisas, o jurista Fábio Konder Comparato decidiu ir à luta. Sua meta é aproximar instituições autônomas da sociedade, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ou o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), apostando que elas podem atuar como depositárias dos anseios da população. "Esse movimento deve impulsionar a reforma política de que o País precisa. Não creio que o Congresso Nacional e o Executivo queiram ser agentes dessa mudança." Depois de dedicar a vida a causas públicas, como a defesa de direitos humanos, Comparato aposentou-se do cargo de professor titular da Faculdade de Direito da USP em 2006 e, atualmente, preside a Comissão de Defesa da República e da Democracia no Conselho Federal da OAB. Além disso, é fundador da Escola de Governo da USP. Simpatizante de primeira hora do PT, distanciou-se do partido logo que Lula chegou à Presidência. Uma de suas batalhas, hoje em dia, consiste em criar e/ou estimular canais de expressão popular. "O voto, apenas, não representa a voz do povo". Pondera que a dissonância entre governo e governados, escancarada com a crise do sistema aéreo, não é tema exclusivo da gestão Lula. Ela atravessa os tempos, mal disfarçando a embriaguez que o poder causa em quem chega lá. Na visão do jurista, autor de Ética - Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno (Companhia das Letras, 2006), o Brasil padece de um suceder de governos onipotentes, auto-suficientes e centralizadores. Romper com essa insistência histórica demandaria pressão popular. E dá um exemplo: "Afinal, quem liberou o uso da pista de Congonhas sem as ranhuras? Queremos saber. E aplicar o direito penal, que nos ensina serem co-autores de um crime todos os que concorreram para seu resultado". Simples assim, mas contundente assim. Tem-se a impressão de que o brasileiro é um alienado. Mas também não há um certo autismo no poder? A sensação corresponde plenamente à realidade. O que não é correto é circunscrever esse fenômeno ao governo atual. Em todos os governos, há uma tendência incoercível à auto-suficiência. O poder acorda a besta egoísta que dorme em cada um de nós. Por mais que se queira formar um governante generoso e altruísta, é preciso saber que o exercício do poder o leva fatalmente a esta autoconcentração. Daí, a necessidade de se estabelecer controles objetivos e a urgência de uma reforma política. Quais os modelos que essa reforma política deveria seguir? Primeiramente, se a reforma política sair, ela decorrerá da pressão externa aos órgãos públicos, ao Congresso e ao governo. Somente instituições nacionais que tenham algum prestígio, como a CNBB e a OAB, podem liderar uma campanha pela reforma. A última proposta que apresentei ao conselho federal da OAB foi a de introduzir na Constituição um instituto da revisão geral da própria Constituição. Mas essa revisão não pode ser feita pelo Congresso Nacional. Ela tem de ser feita por uma assembléia, eleita pelo povo, cujos integrantes seriam inelegíveis para qualquer cargo público por oito anos. O Congresso Nacional não pode ser o órgão de mudança da Constituição, porque ele decide em causa própria. O juiz não pode decidir em causa própria, o legislador não pode legislar em causa própria. Só que, aqui no Brasil, tudo isso é considerado normal. A embriaguez pelo poder é mais grave com os políticos brasileiros? No Brasil, essa tendência quase paranóica à auto-suficiência de quem exerce o comando é muito reforçada pela nossa tradição de onipotência do Poder Executivo. Essa expressão é de Joaquim Nabuco, quando ele escreveu O Estadista do Império, referindo-se ao imperador. Isso é uma tradição que tem raízes na Península Ibérica, onde o poder sempre foi muito personalizado. No caso brasileiro, o Poder Executivo é hegemônico e se concentra no presidente da República. É por isso que uma das propostas que eu levei ao conselho da OAB é a separação institucional entre chefia de Estado e chefia de governo. Como funcionaria? O chefe de Estado deve ter uma visão ampla do mundo político e, sobretudo, tem que se preocupar com o Estado, e não com o seu governo. É impressionante verificar que, no segundo mandato do atual presidente, ele levou três meses para completar o ministério e isso aconteceu de forma precária. Agora, a troca de ministros na pasta da Defesa, por exemplo, é um arremedo de satisfação à população. O estilo do presidente é de não demitir ninguém, deixando a situação apodrecer de tal forma até que o ministro peça para sair. Assim, a função do chefe de Estado fica absorvida pelas negociações partidárias, que nada têm a ver com o interesse coletivo. Outro ponto de inépcia na nossa organização política é o fato de que vivemos no dia-a-dia e da mão para a boca. O escritor austríaco Stefan Zweig (que morreu em Petrópolis, em 1942) chamou o Brasil de país do futuro. Na verdade, o Brasil não enxerga o futuro e nunca soube enxergar. Todas as crises que estamos vivendo, e a última é essa horrorosa do acidente da TAM em Congonhas, são anunciadas e previsíveis. Por que não as evitamos? Questão de mentalidade, de tradição imediatista do brasileiro. Há também a disfuncionalidade dos órgãos de Estado. Todas as políticas públicas de infra-estrutura, como energia, transporte e comunicações, e políticas sociais, como educação, saúde e segurança, estão concentradas no chefe do Poder Executivo. Ele tem um mandato de quatro anos e a segunda metade é sempre dedicada à eleição ou reeleição. E pior: ele é o centro barométrico das pressões de toda ordem. Todos os que buscam algo no campo econômico, religioso, sindical e partidário político vão pressioná-lo. De modo que ele não tem um minuto para pensar no futuro, está sempre administrando pressões ou crises. No caso do transporte aéreo, eu lembro que há 30 anos o então governador de São Paulo, Paulo Egídio Martins, anunciou a construção de um novo aeroporto, porque Congonhas era inapropriado. E isso nunca saiu do papel. De onde vem tanta legargia? Poderíamos supor que é porque esse pessoal é incapaz, mentiroso e demagogo. Mas, mesmo que fossem zelosos, competentes e honestos, a organização do poder impede a realização de políticas de longo prazo. Um exemplo claro é a política educacional. O centro dela é a formação de professores. E um professor não se forma do dia para a noite, é preciso o tempo de uma geração. Isso é impossível, porque só se pensa no curto prazo. Mesmo que o presidente Lula levasse a termo o anúncio de construção de um novo aeroporto, isso levaria uns dez anos e ele não estaria mais no poder. Nenhum governante gosta de construir algo para que seu sucessor inaugure. Falta um projeto para o Brasil? Sim. Há mais de 30 anos que este país não tem projeto de nação. Antes, tinha um projeto horrível, que era o dos militares. Mas pelo menos era um projeto. Hoje, vivemos sem rumo, uma espécie de navio, ou pior, de avião, que decolou sem plano de vôo, sem transponder e sem rádio para se comunicar com os controladores de vôo. Só nos damos conta disso quando acontecem essas catástrofes. É preciso lembrar que o famoso apagão de 2001 ocorreu depois de previsões alarmantes e o governo FHC não tomou providências. O colapso do sistema de segurança em São Paulo, em 2006, já estava anunciado e o governo do Estado foi incapaz de tomar medidas preventivas. Apesar dos altos índices de popularidade do governo Lula, há uma sensação de desamparo em parte da população. As pesquisas estão falhando ao captar esse sentimento? O atual presidente tem mais talento político do que seus antecessores para se manter com popularidade. Ele tem a cara do povo, fala como o povo e tem uma visão de mundo semelhante à do povo. E, ao contrário daquilo que nós, intelectuais, em geral acreditávamos, o presidente Lula tem uma característica típica do povo brasileiro: ele é conservador. O povo brasileiro, em todos os segmentos, é conservador. Não tem nenhuma atração pela revolta e, menos ainda, pela revolução. Fora isso, nenhum outro governante foi capaz de se desprender de todos os "companheiros" que causavam problema, sem ser atingido. Nem Getúlio Vargas foi capaz disso. A fase de descontentamento do povo, representada pelas vaias no Maracanã, pode significar uma virada na popularidade do presidente? O povo brasileiro, tal como o romano, só pede ao poder duas coisas: pão e circo. Ele recebe o pão confortavelmente, com o Bolsa-Família. E esse assistencialismo está na base da adesão de todas as classes pobres à atual ordem conservadora. É muito mais fácil ao governo distribuir R$ 90 por família pobre do que encontrar, anualmente, vagas para os 2,3 milhões de jovens que chegam ao mercado de trabalho. Mas e o circo? O circo é o esporte. Especificamente o futebol. Para o povo brasileiro isso é um terreno sagrado. Aí o político não deve entrar, porque o povo não admite. Talvez tenha sido essa a razão das vaias no Pan. E a classe média? As classes médias foram as mais prejudicadas a partir dos anos 90 no Brasil. Um levantamento feito com dados do Caged (Cadastro Geral do Emprego e Desemprego do Ministério do Trabalho) mostra que, de 2000 a 2006, o rendimento daqueles que ganham entre 3 e 10 salários mínimos caiu 46%. E mais de 2 milhões de trabalhadores nessa faixa salarial estavam desempregados. Os pobres não têm trabalho, mas têm o Bolsa-Família. Os ricos nunca ganharam tanto como no governo do operário Lula. Hoje a sensação de insegurança para a classe média é brutal. A insatisfação da classe média pode se refletir de alguma forma nas composições políticas futuras? Essa faixa da população foi politicamente muito importante no passado, porque tinha uma ligação direta com as Forças Armadas e a Igreja. Agora ela não tem a quem recorrer. Não pode mais reclamar ao bispo, porque ele não tem mais poder. E não pode mais atuar como vivandeiras dos militares porque, ao que parece, eles abandonaram as pretensões golpistas. Além disso, a classe média está hoje com maior desprezo pelo voto e pelas eleições. Por isso insisto na necessidade de ampliar os mecanismos de participação do povo nas decisões políticas. Essa deveria ser a base da reforma política? Há três grandes eixos das propostas de reforma política que levei ao Conselho Federal da OAB. O primeiro é ampliar e reforçar os mecanismos de democracia direta e participativa, de alto a baixo. O segundo ponto é o aperfeiçoamento desses mecanismos. Precisamos fazer com que os eleitos sejam responsáveis perante o eleitorado, dando a este a possibilidade de revogar mandatos. Nós temos uma proposta, já em andamento no Senado, de uma emenda constitucional introduzindo o recall, ou seja, o referendo revogatório de mandatos eletivos para o Executivo e o Legislativo, bem como a dissolução a atual legislatura. O efeito desse mecanismo não é concreto, mas é uma arma de dissuasão. Se o povo entender que tem mesmo esse poder, pelo simples fato de se cogitar uma nova eleição para revogar o mandato de alguém, isso já produz um efeito tal que certamente este alguém mudará de atitude. Qual é o terceiro eixo? É a instauração de um poder de planejamento autônomo em relação ao Poder Executivo, com participação efetiva da sociedade civil, dos empresários, dos trabalhadores, dos grupos socialmente vulneráveis, dos mais de 200 conselhos populares do Brasil. Todos têm que pensar o futuro e esse processo não pode ficar restrito a eleições a cada quatro anos. Não existe nenhum poder que possa se manter sem o mínimo de adesão dos governados. Essa adesão pode ser passiva ou chegar a uma colaboração ativa. O problema é esclarecer o povo. De que maneira esse esclarecimento aconteceria? Há uma responsabilidade enorme dos meios de comunicação. A estratégia das classes dominantes no Brasil é impedir a discussão dos problemas. Reformas dependem da aprovação de pessoas que já estão no poder e elas não vão aprová-las, a não ser que haja enorme pressão da sociedade. Essa pressão precisa ser comandada por alguém. Por partidos políticos? Sindicatos? Não, porque são todos oligárquicos. É por isso que deposito todas as minhas esperanças nessas instituições prestigiosas da sociedade civil, que têm seus defeitos, mas não têm o rabo preso. Falo sempre em OAB e CNBB, mas há várias outras, como as que representam as pequenas e médias empresas, caso da Confederação Nacional da Indústria (CNI). O senhor não crê na vontade do presidente de fazer as reformas? Como todo exercente do poder, a preocupação do presidente Lula é de se manter lá. Para fazer as reformas que o futuro do País exige, ele teria de enfrentar os núcleos de poder já instalados. Isso implicaria uma verdadeira guerra. No plano econômico, ele deu continuidade ao processo que iniciamos nos anos 90, um processo de desindustrialização decorrente de uma política de privilégios ao capital financeiro. E, para o capitalismo financeiro, não existe o longo prazo. As agências reguladoras, que deveriam ser uma forma de o governo mostrar que está atento, defendendo direitos do cidadão, parecem agir mais de acordo com os interesses das empresas, como se fossem representantes delas. Por quê? Nos EUA, a criação das agências reguladoras teve o objetivo de impedir que a pressão dos políticos tornasse inócua a fiscalização e regulamentação das atividades econômicas. Já com a criação das agências autônomas no governo FHC, houve um contrabando ideológico, porque elas surgiram para impedir a regulação do Estado sobre a economia. Todas elas, sem exceção, têm ligações íntimas e incestuosas com as empresas que deveriam fiscalizar. O caso da Anac é evidente. Por que o aeroporto de Congonhas foi liberado com uma pista inacabada, resultando em um homicídio culposo por parte dos dirigentes públicos? Porque a utilização do aeroporto era indispensável para a lucratividade das companhias aéreas. Essas agências precisam ser extintas ou reformuladas. No caso do acidente da TAM, é preciso saber quem liberou o uso da pista sem as ranhuras. No direito penal, consideram-se co-autores de um crime todos os que concorreram para o resultado. Portanto, deveríamos levar ao Ministério Público (MP) uma denúncia para apontar responsabilidades. Se o MP não denunciar, cabe a ação penal privada por parte dos familiares das vítimas. No Brasil, sempre se falou mal do serviço público. Virou sinônimo de ineficiência. Hoje, serviços privados também deixam a desejar - e estão aí os sistemas de telemarketing que não resolvem a demanda do consumidor às voltas com problemas no telefone ou na TV por assinatura. O descaso com os cidadãos só confirma o fato de que não temos espírito de serviço público no Brasil. Consideramos o serviço ao povo algo inferior, desprezível. Temos de fazer um esforço de reeducação dos servidores públicos e isso começa com a denúncia dos abusos que sofremos. Quanto ao serviço privado, é uma ilusão achar que eles têm a intenção de servir bem o consumidor. É só lembrar do primeiro mandamento da TAM, em seu site: "Nada substitui o lucro." O senhor entende que o presidente viva cercado de assessores e ministros que acabam por filtrar dados do Brasil real? Isso é tão velho quanto o exercício do poder. Todos esses colaboradores incensam o chefe e fazem triagem. As boas notícias são alardeadas, as más, apagadas. Por isso um contato mais freqüente do chefe de governo com os jornalistas é indispensável. Não um contato programado, um monólogo. Mas um contato real, para que o cerco da imprensa surta efeito. Neste particular, o exemplo americano é excelente. A impressão que se tem é a de que até mesmo uma crise como a que aconteceu em Congonhas pode chegar filtrada. Viria daí a indignação das pessoas, tão visível nos últimos dias? O povo fica fora de si porque não tem a quem recorrer. Uma solução para isso seria multiplicar as ouvidorias. Não sinto falta de ouvidores da companhia ou do governo, mas de ouvidores de alguma forma apontados pela população. As entidades de defesa dos direitos do consumidor poderiam escolher pessoas assim. Gente que teria uma ligação direta com o MP. E precisamos cobrar cada vez mais do MP. Este órgão deveria cada vez mais cortar os laços com o governo. Laços que ainda existem no plano federal, afinal, o chefe do MP é designado pelo presidente da República. E não poderia ser nomeado pelo Poder Executivo, jamais. A confiança no Poder Judiciário não ficou abalada com a série de escândalos envolvendo juízes? Sim, mas espero que ela possa ser resgatada. A reforma do Judiciário foi meia-sola, porque eles criaram o Conselho Nacional de Justiça, sendo que a maior parte dos membros vem do próprio Poder Judiciário. Longe de se criar um controle externo, demos apenas um passo. Como está o seu estado de espírito diante do Brasil que temos? Atravessamos um momento decisivo da história brasileira. E, como sempre, não há uma solução determinista. Ou mudamos radicalmente nossa organização política e mesmo nossa visão de mundo, ou vamos caminhar, talvez lentamente, mas de modo irremediável, para a mediocrização. É claro que isso demanda um trabalho que ultrapassa as capacidades individuais das pessoas. Não sei como o País vai evoluir. Minha esperança é que a consciência da gravidade do momento e da necessidade de mudança comece a tomar conta da população. NOVO AEROPORTO "Nenhum governante gosta de construir algo para que seu sucessor inaugure" DIVISÃO DE CLASSES "O pobre tem o Bolsa-Família. O rico nunca ganhou tanto. A classe média vive a insegurança" REGULAÇÃO "Todas as agências têm ligações incestuosas com as empresas que deveriam fiscalizar" "O povo fica fora de si porque não tem a quem recorrer. Uma solução seria multiplicar as ouvidorias populares. Não seria um ouvidor da empresa ou do governo, mas alguém escolhido pelo povo. E ele teria uma ligação direta com o MP"

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