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Um saco de virtudes

A preferência de todos os lados do embate político pelo adjetivo ‘republicano’ atesta a falta deseriedade de uma palavra fetichista

Por Sérgio Rodrigues
Atualização:

O adjetivo “republicano” tem feito hora extra no vocabulário de nossa crise político-econômico-institucional-moral-nervosa. Palavra fetichista, circula por aí pavoneando uma sobra de sentido, uma cauda de conotações positivas, saudáveis, graves – e vagas, como convém à mistificação. Nem os melhores dicionários, sempre atrasados, registram o fenômeno. Para os lexicógrafos sem imaginação, republicano é simplesmente aquilo que diz respeito à república, palavra que todo mundo sabe ter vindo do latim res publica (“coisa pública”) e que, historicamente, se opõe à monarquia como forma de governo. Agora vejamos: ao afirmar que tinha “teor republicano” a conversa telefônica grampeada entre a presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula, será que a nota divulgada pelo Palácio do Planalto no dia 16 queria negar boatos de uma conspiração petista para coroar Lula I? E quando, na terça-feira (22), o senador tucano Aécio Neves alegou ter se encontrado com o vice-presidente Michel Temer para uma “conversa republicana”, estaria se defendendo da suspeita de tramar com o presidente do PMDB a volta dos Orléans e Bragança?

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Evidentemente, “republicano” não entrou em nenhum dos dois contextos com seu significado primário. Estava ali como palavra mágica do momento, saco de virtudes que, espremido, quase não rende caldo. Se a nota do Planalto qualificasse a conversa de Dilma e Lula como normal, legal, legítima, transparente, respeitável, impoluta, desprovida de malícia, rotineira, burocrática, banal, de comadres, superbacana ou até, para resumir, honesta, o efeito seria o mesmo: negar uma conduta escusa. Sinônimos semelhantes poderiam ter sido empregados por Aécio, também interessado em refutar movimentos condenáveis. Como ocorre do lado negativo do vocabulário com o termo “fascista”, que cada vez mais perde sua carga histórica de sentido para virar um xingamento político pastoso, o equivalente de “bobo e feio” numa briga de crianças, o elogiosíssimo “republicano” vai ficando cada vez mais parecido com “bonito e legal”.

Os lexicógrafos têm um nome para termos assim, que viram guarda-chuvas de sentidos e perdem em precisão o que ganham em abrangência: palavras-ônibus. Já faz alguns anos que esse ônibus deixou a estação. Em 2005, o advogado Márcio Thomaz Bastos, então ministro da Justiça do primeiro governo Lula, foi visto reivindicando para si a honra de maior propagador do adjetivo “republicano”, súmula dos valores que gostaria de ver fortalecidos em nossa cultura político-administrativa. Honra duvidosa: em 2014, antes de virar ministra da Agricultura de Dilma, a senadora ruralista Kátia Abreu (PMDB) lamentou que a palavra fosse usada para expressar “o seu avesso” – no caso, “a ação de ONGs e sindicatos no interior da máquina estatal”. Convém incluir na conta o avesso do avesso também. O uso frouxo de “republicano” por todos os lados do atual arranca-rabo político, como estandarte único de projetos e comportamentos opostos, basta para atestar a falta de seriedade da palavra.

  Foto: Denise Andrade | ESTADAO CONTEUDO

Isso não quer dizer que seja impossível trazer esse adjetivo para o debate contemporâneo sem barateá-lo. Talvez seja até obrigatório em nosso quadro atual de desarranjo cognitivo. Mas convém levar em conta que o tributo pago ao rigor é alto. Autor do fundamental Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que Não Foi (Companhia das Letras), o historiador José Murilo de Carvalho detectou antes dos dicionaristas a ânsia de espalhamento semântico da palavra e escreveu para o jornal O Globo, em 2009, um artigo em que reflete sobre o que seria “ser republicano”. Eis alguns dos atributos que listou: “É crer na lei como garantia da liberdade. É saber que o Estado não é uma extensão da família, um clube de amigos, um grupo de companheiros. É repudiar práticas patrimonialistas, clientelistas, familistas, paternalistas, nepotistas, corporativistas. É acreditar que o Estado não tem dinheiro, que ele apenas administra o dinheiro pago pelo contribuinte. (...) É não praticar nem solicitar jeitinhos, empenhos, pistolões, favores, proteções”. A conclusão de Carvalho, ilustrada com uma frase de 1663 do padre jesuíta Simão de Vasconcelos (“Nenhum homem nesta terra é repúblico”), não poderia ser mais implacável: “Ser republicano é não ser brasileiro”. Pode haver certo exagero nisso. Difícil é negar que os critérios do historiador, aplicados à crise de hoje, não deixariam de pé um único combatente.

Talvez seja o caso de recuar dois passos e pensar numa frase atribuída a Confúcio: “Se a linguagem não está de acordo com a verdade das coisas, nada chega a bom termo”. É provável que o adjetivo “republicano” jamais se sinta à vontade no papel de sinônimo daquilo que há de mais decente e favorável à cidadania em determinado ambiente político. Fará algum sentido, afinal, jogar tanto peso no lombo de uma palavra volúvel que ao longo da história foi capaz de se associar a regimes como o da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o da República Islâmica do Irã, o da República Bolivariana da Venezuela e o da República de Uganda – inclusive na fase do abominável Idi Amin Dada? E que ultimamente tem sido vista no noticiário internacional a tiracolo de Donald Trump? Parece sábio deixar “republicano” em paz, antes que o cidadão médio comece a refletir sobre o que haverá de tão errado com a monarquista Holanda.