Um século depois, a vez do 'NeuroFreud'

Vistas pela ciência dos últimos 50 anos com desconfiança e até desprezo, as teorias de Freud estão sendo comprovadas por neurocientistas

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Por Sidarta Ribeiro
Atualização:

Sigmund Freud produziu uma teoria abrangente sobre a estrutura e funcionamento da mente, inicialmente com grandes repercussões na biologia e medicina. Fez várias descobertas importantes sobre a psiquê humana, criou um método terapêutico revolucionário, agregou um círculo possante de colaboradores, multiplicou seguidores e delimitou um campo de pesquisa inteiramente novo, com método e terminologia próprios, a psicanálise. Sua teoria extravasou os limites originais, contagiando as ciências humanas e as artes em geral. Mas, se Freud influenciou toda a cultura humanística, não en controu abrigo dentro da própria ciência. Ganhou, mas não levou. Veementemente rejeitado pela psiquiatria de seu tempo, foi ostracizado pelas gerações seguintes de neurocientistas, até tornar-se alvo de desprezo a priori. A ojeriza a Freud remonta a sua postulação do fenômeno onírico como chave essencial para compreender a mente humana, por meio da relação com os pensamentos inconscientes, os delírios e a transformação simbólica das memórias indesejadas. No início dos anos 50, descobriu-se que os sonhos coincidem quase sempre com uma fase específica do sono, marcada por movimentos rápidos dos olhos (daí o nome sono REM, acrônimo de rapid-eye-movement). A existência desse estado cerebral foi interpretada como um duro golpe na teoria freudiana, reduzindo o sonho a um mero estado fisiológico de precisa definição, mas limitada transcendência. Poucos anos depois veio um segundo ataque, com a descoberta e rápida disseminação terapêutica do haloperidol, primeira droga capaz de debelar surtos psicóticos sem nenhuma necessidade de escutar o paciente falar sobre suas vivências. O haloperidol atua como antagonista do neurotransmissor dopamina, e seu advento pareceu retirar a psicose da nebulosa esfera do sonho para remetê-la ao mundo concreto da farmacologia. O golpe de misericórdia em Freud foram as tentativas fracassadas de corroborar sua teoria das neuroses, segundo a qual traumas psicológicos se expressam como sintomas físicos aparentemente não relacionados com suas causas, mas curáveis pela tomada de consciência do trauma gerador. Até mesmo por sua natureza idiossincrática, a cura pela palavra permanece controvertida até hoje. O descrédito científico da psicanálise teve graves conseqüências. A despeito da origem acadêmica de Freud, os círculos psicanalíticos se voltaram progressivamente para a cultura, afastando-se cada vez mais do empirismo quantitativo da biologia, química e física. Algumas vertentes se entregaram ao sectarismo reativo e ao culto à personalidade, gerando um triunfalismo anticientífico que abdicou integralmente da pesquisa neural e teve resultados desastrosos para a inserção biomédica de Freud a partir dos anos 60. O divórcio foi expresso de forma cabal pelo filósofo Karl Popper, quando afirmou que a psicanálise é intrinsecamente incapaz de produzir hipóteses testáveis. Desde então, vulgarizou-se a opinião de que Freud não construiu ciência alguma e sim uma coleção estapafúrdia de metáforas mitológicas, uma teoria não demonstrável por meio de experimentos que não passaria, portanto, de metafísica. Tratado ao longo do século 20 como profeta, depravado ou charlatão, eis que neste início de milênio o velho Sigmund regressa ao centro da pesquisa neurocientífica, ressurgindo em tantas frentes distintas de investigação que já não se pode ignorá-lo. Por meio de estudos de ressonância magnética funcional (RMF), descobriu-se que a repressão de memórias indesejadas, pioneiramente descrita por Freud, não apenas existe objetivamente como requer uma desativação de regiões cerebrais dedicadas às memórias e emoções, por meio da ativação de porções relacionadas à intencionalidade. Experimentos eletrofisiológicos e de RMF revelaram neurônios capazes de sinalizar recompensa e punição, ecoando as pulsões de vida e morte que Freud postulou como eixo do comportamento humano. O estudo de pacientes com lesões neurais que causam a perda da capacidade de sonhar, mas preservam o sono REM, mostrou que o sonho habita esta fase do sono, mas com ela não se confunde. A descoberta de que essas lesões envolvem circuitos dopaminérgicos que codificam a satisfação e frustração de expectativas deu novo fôlego à tese freudiana de que o desejo é o motor do sonho. Por outro lado, pesquisas em modelos animais de psicose com altos níveis de dopamina revelam notável semelhança entre os padrões de atividade neural da vigília e do sono REM, corroborando de forma surpreendente a idéia de que o delírio psicótico resulta da dificuldade de discernir o sonho da realidade. Outro tema freudiano resgatado nos últimos anos é a presença de reminiscências da vigília dentro do sonho. Tais "restos diurnos" já foram extensamente observados em humanos e roedores durante ambas as fases do sono, tanto em nível molecular quanto eletrofisiológico. Sabemos hoje que a interrupção da interferência sensorial que o sono propicia induz uma reverberação mnemônica que é crucial para a consolidação duradoura do aprendizado. A tradução neurobiológica de conceitos clássicos da psicanálise atualiza a famosa afirmação de Freud de que "o sonho é o caminho real para o inconsciente": enquanto as memórias correspondem aos "conglomerados de formações psíquicas", sua totalidade, o banco completo de memórias adquiridas pelo indivíduo (e todas suas combinações possíveis), constitui o "inconsciente". Quanto à sexualidade infantil, escandalosa na Viena do século 19, sabemos hoje que se trata de um componente normal do desenvolvimento da criança, tornando-se horrenda apenas quando abusada por adultos. O que nos conduz a uma das partes mais polêmicas da teoria freudiana, justamente a noção de que traumas psicológicos podem ocasionar sintomas corporais graves. Mas talvez até esse aspecto possa ser testado em breve, em face dos avanços tecnológicos que permitem o estudo não invasivo do cérebro. Se vivo estivesse, Freud provavelmente levaria o divã para dentro do scanner de RMF. De todo modo, a rememoração do trauma num contexto de estimulação sensorial amena, típica do setting psicoanalítico, se assemelha bastante ao que ocorre em outras técnicas psicoterápicas validadas pela medicina para o tratamento do transtorno do estresse pós-traumático, como a estimulação repetitiva, o relaxamento, a habituação ao relato traumático, a reinterpretação cognitiva em contexto não ameaçador e o uso de fármacos capazes de enfraquecer a memória traumática após sua evocação. Para além da questão clínica, é preciso reconhecer que a psicanálise muitas vezes não objetiva a cura, nem termina por si mesma. Uma de suas funções mais importantes é dar sentido ao complexo conjunto de símbolos que cada um carrega em si, servindo não necessariamente para atingir a cura, mas para o autoconhecimento. Se a dor é inerente à condição humana, a psicanálise propõe fazer da própria vida uma obra de arte. É chegada a hora do reencontro da ciência com Freud, a partir da dissolução dos preconceitos em ambos os lados. Temem os psicanalistas, com certa razão, a invasão ignorante de seus domínios, o chauvinismo reducionista, a tirania da eficácia objetiva, a falta de introspecção arrogante da ciência. Temem também perder a redoma confortável que o isolamento ideológico provê. Falta diálogo aberto no próprio seio da tradição freudiana, cindida em guetos historicamente imiscíveis. O avanço da teoria legada por Freud requer espaço para novas sínteses, com as quais o empirismo biológico tem muito a contribuir. Por outro lado, é urgente reavaliar a importância da psicanálise para a neurociência. Freud não é mera curiosidade histórica. Ao contrário, legou um extenso programa de investigação pleno de hipóteses testáveis, um verdadeiro projeto para uma psicologia científica. É preciso reler sua obra com os olhos do presente, testando idéias e reformando o edifício herdado. A língua franca dessa releitura é a investigação experimental da relação entre mente e cérebro. *Sidarta Ribeiro é neurocientista e pesquisador da Universidade Duke, na Carolina do Norte, EUA

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