Uma aposta na memória cultural

Comoção causada por roubo no Masp talvez leve o País a valorizar seu patrimônio artístico, diz filho de Portinari

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Por Flavia Tavares
Atualização:

João Candido Portinari luta há quase 30 anos para tornar a obra de seu pai, Candido Portinari, mais acessível ao público brasileiro. O trabalho que João coordena no Projeto Portinari, desde 1979, já foi muito além de catalogar as 5 mil peças que o pintor produziu, no único catálogo raisonné de um artista do Hemisfério Sul, e reunir 30 mil documentos sobre ele. Atualmente, João dedica-se a levar a obra do pai a crianças pobres, presídios e hospitais. Utilizando uma tecnologia importada dos Estados Unidos, de réplicas de alta precisão, o Projeto Portinari montou exposições itinerantes com cópias dos quadros, que viajam pelo Brasil aproximando a população da cultura levada pelas obras de Portinari. Pois, em meio a esse esforço tremendo de divulgação do patrimônio cultural brasileiro, um dos principais quadros de Portinari - e um dos poucos a que o público tem acesso - era furtado do Masp, em São Paulo. O Lavrador de Café, de 1934, foi levado do museu no dia 20 de dezembro, com O Retrato de Suzanne Bloch, de Picasso. Ambos foram resgatados esta semana e devolvidos às paredes do Masp. Mas esses 20 dias foram de muita aflição para João. "Se fosse qualquer outra obra talvez eu não ficasse tão abalado. Mas esse quadro é um dos primeiros em que Portinari aborda o tema central de sua obra, o trabalhador brasileiro", diz. "É como se tivessem seqüestrado meu pai." A agonia desse episódio acabou. E João consegue tirar ao menos um ponto positivo dele: o fato de que a sociedade ficou comovida com o furto de um Portinari pode, enfim, contribuir para que os brasileiros passem a cuidar melhor de seus bens culturais. Furto da alma "Existe uma diferença sobre como tratamos os crimes contra bens culturais e outros crimes. Há uma seqüência de incidentes relativamente recentes com nossas obras de arte. O incêndio no MAM do Rio, em 1978, o furto de obras no museu Chácara do Céu, em 2006, na biblioteca Mário de Andrade, no mesmo ano, e, agora, no Masp. Sem falar nas falsificações, que são tão graves quanto os furtos e mais freqüentes. O povo está cada vez mais indignado com os crimes financeiros que acontecem no País. Mas, no crime financeiro, o ladrão mete a mão no bolso da nação. Já no crime contra bens culturais, o ladrão mete a mão na alma, na história e na memória da nação. O bem coletivo não é só o financeiro. Esta consciência e esse apreço pela cultura têm de chegar à anima popular brasileira. Bens coletivos "No Brasil, o pobre não tem coragem de entrar em um museu com uma escadaria imponente. Embora isso tenha mudado aceleradamente com o governo Lula, ainda falta um longo caminho. Participei de uma reunião na Câmara dos Deputados em que havia pessoas da área cultural para discutir a segurança da nossa arte. E houve muitos testemunhos de pessoas da área de arte sacra dizendo que é espantoso o número de imagens e altares roubados das igrejas. Há uma mentalidade de se apropriar do bem coletivo e isso só muda com educação. Pelo mundo "Já aconteceram casos de roubos, furtos e incêndios em outros museus do mundo. Museus importantes. Anos antes do incêndio do MAM no Rio houve um incêndio no MoMa, de Nova York, que foi muito pior. No site da Interpol, vemos quantas obras de arte são procuradas no mundo inteiro. Há uma questão de segurança internacional. O sonho de Miami "Muito do nosso passado cultural não está sendo preservado ou está fora do País. O que isso demonstra é mais que falta de patriotismo. É falta de senso de nação e de consciência cultural. Houve alguns benefícios nesse episódio do Masp. Um deles foi a comoção internacional. Até a Al-Jazira deu destaque ao assunto. Claro que à primeira vista parece que foi porque um Picasso foi furtado. Mas houve muito interesse em saber quem é esse tal de Portinari levado junto. Quando ocorreu a última exposição expressiva de Portinari no exterior? Em 1963. E foi iniciativa de um italiano, não do governo brasileiro. Quando houve o Ano do Brasil na França, procuramos o ministro da Cultura para levar Portinari. Não se fez nada. Os brasileiros ficam sonhando com Miami e não têm orgulho das criações do Brasil. Grande parte da nossa elite sofre desse mal. Disney vs Monteiro Lobato "Não sei por que o mecenato não dá certo no Brasil. Nos EUA, na França, os mecenas existem. Há mecanismos de incentivo fiscal e há a cultura de investir em arte. Para se ter isso, é preciso construir essa mentalidade no brasileiro desde criança. É preciso cultuar as gerações passadas de grandes artistas brasileiros para que uma nova geração se crie e cada cidadão considere sua cultura um patrimônio de altíssimo valor. Descontinuidade "Toda vez que muda um governo, muda a política para a cultura. Quando comecei o Projeto Portinari, a meta final era fazer um Museu Portinari. Já desisti. Houve momentos em que estive a milímetros de conseguir. Nos anos 80, consegui que o governo do Estado do Rio cedesse um terreno contíguo à PUC. O governo mudou e, embora a cessão do terreno tivesse sido publicada no Diário Oficial, os novos governantes disseram não reconhecer a autoridade do governador anterior. Fazer um museu é um empreendimento enorme. Com o preço que as obras de Portinari atingiram talvez nem o poder público nem o privado tenham cacife para isso. Personalismos "Depois que Pietro Bardi saiu do Masp, o museu começou a enfrentar jogos políticos. Isso porque o brasileiro é personalista demais. É difícil para nós entender a responsabilidade coletiva. Parece que é preciso ser polêmico para ser o motor de alguma coisa. Temos que construir instituições que não dependam de uma única pessoa. Cadê nossas obras? "Quando foi construído o Museu da República, em Brasília, surgiu a questão: inaugurar com que acervo? Sugeri que num raio de menos de um quilômetro daquele museu havia mais obras de arte do que em todos os museus brasileiros reunidos - no Banco Central, na Caixa Econômica Federal e no Banco do Brasil. Só no Banco Central, nas reservas técnicas, havia 14 painéis de Portinari, chamados Cenas Brasileiras, e outras peças que chegaram lá por falência de outros bancos que as entregavam como pagamento. Elas estão invisíveis ao público. Menos de 5% da obra de Portinari está exposta. O restante está com colecionadores, em salas de bancos ou nas reservas técnicas do BC. Na sala do Copom há uma das mais importantes obras de Portinari, com seis metros de altura, que é o Descobrimento do Brasil. O Museu da República tem pé-direito bem alto e eu sugeri que essa obra fosse exposta ali. Houve uma oposição de ferro. Ouvi dizer, mas não tenho provas, que o Henrique Meirelles não queria que a obra saísse do Banco Central. Mas o argumento oficial era de que não se podia tirar o painel de lá por questões climáticas e de umidade relativa. É um contra-senso. Um banco oferece essas condições para uma obra de arte e um museu, não?"

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