'Uma Confissão', de Tolstoi, apresenta profissão de fé do escritor

À beira do suicídio, mestre da literatura russa contou em livro como passou a entender a fé como motivo para viver

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Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualização:
O escritor Lev Tolstoi em Yasnaya Polyana, 1908, em sua única fotografia colorida Foto: Sergei Prokudin-Gorski

O que vai ser daquilo que faço hoje e daquilo que vou fazer amanhã – o que vai ser de toda a minha vida? Para que devo viver, para que fazer algo? Existe, em minha vida, algum sentido que não seria aniquilado pela morte inevitável?” Tais perguntas existencialmente inescapáveis estão no coração de Uma Confissão (1879), obra-prima de Tolstoi recém-publicada pela Mundo Cristão, com tradução e apresentação de Rubens Figueiredo. 

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Acossado pelo espectro do suicídio, o consagrado autor de Guerra e Paz (1865-69) e Anna Karenina (1873-77) reconfigura o dilema de Hamlet: se quem muito pensa sobre a vida cedo ou tarde depara com a morte, ser e não ser, para Tolstoi, não podem transformar as respostas em lápides. 

Aristocrata riquíssimo, Tolstoi já fizera uma crítica radical à sua classe social, ao chamar a todos (e, sobretudo, a si mesmo) de parasitas que, apartados da busca pelo sentido da vida, só faziam chafurdar na luxúria que o privilégio da exploração alheia lhes permitia. 

Autor consagrado internacionalmente – a vida do conde/escritor era rastreada por jornalistas ávidos por indiscrições e escândalos (eis os avós dos atuais paparazzi) –, Tolstoi já fizera uma (auto) crítica radical aos escritores que, sempre envolvidos em querelas e escaramuças, só faziam jactar-se pelo apreço do público e, assim, desviavam-se das questões últimas da existência e reduziam a literatura a uma forma sofisticada de ludibrio. 

É assim que, em meio a uma torrente tão profunda quanto rara de autocrítica, abnegação e lucidez, as confissões de Tolstoi recorrem a um conto oriental para tentar desvelar o sentido da vida a ser ceifada pela morte. Imaginemos um viajante que, enquanto cruza a estepe, se vê perseguido por um animal feroz. Para se salvar da fera, o viajante pula em um poço seco, ao fundo do qual há um dragão ávido para devorá-lo. Para evitar a morte certa, o viajante se agarra aos ramos de um arbusto silvestre que lograra crescer através das fissuras do poço. Ocorre que suas mãos começam a ceder, e o viajante sente que logo precisará se entregar para a morte, já que o animal feroz lhe barra a saída, e o dragão faminto lhe veda o abrigo ao fundo do poço. (Para este conto oriental, chegar ao fundo do poço é, de fato, uma noção para otimistas.) 

E eis que o viajante, ao olhar para os lados, vê um rato branco (o dia) e um rato preto (a noite) perambulando junto ao arbusto – o frágil galho que sustenta o viajante vai sendo roído pelos ratos do tempo. Ocorre que, em meio às folhas do arbusto, o viajante descobre uma gota de mel e passa a lambê-la com sofreguidão, como se a ilusão do prazer fugaz pudesse ludibriar a morte certa. É quando Tolstoi arremata o conto oriental: “Porque vejo com clareza o dragão, o mel já não me traz doçura. Vejo só uma coisa – o dragão inevitável e os ratos – e não consigo desviar meus olhos. E isso não é uma lenda, isso é a verdade, inquestionável e entendida por todos.” 

Mas eis que Tolstoi, inquieto e inquisitivo por excelência, nos envolve em um novo turbilhão de perguntas: ora, se a consciência da morte (ou pior, a consciência para a morte) aniquila o sentido racional da vida; se, como quer o sumo pessimismo do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), o nada anterior à existência teria sido preferível à vida, de modo que o retorno ao nada, com a morte, seria o único bem em meio a uma vida repleta de choro e ranger de dentes; se, em suma, o suicídio é a única ação racional para uma vida desprovida de qualquer sentido, como é que a humanidade, desde sempre acossada pelo espectro da morte, ainda não se aniquilou? Como é que os homens e mulheres, desde tempos imemoriais, vêm logrando viver sem se suicidar? 

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É quando Tolstoi, alçando-se para além do inferno suicida, descobre o caráter quintessencial – a bem dizer, ontológico – da fé. A fé, Tolstoi nos confessa, “não é apenas o ‘desvelamento de coisas invisíveis’, não é só a relação do homem com Deus – a fé é o sentido da vida humana, graças ao qual o homem não se destrói, e vive. Se o homem vive, ele acredita em alguma coisa. Se não acreditasse que é preciso viver para alguma coisa, ele não viveria.” Para Tolstoi, a fé não move montanhas – a fé nos faz escalá-las. A fé no sentido para além da morte, a fé em que a morte é uma transição, a fé na eternidade. 

Ora, como Schopenhauer não se matou, Tolstoi bem poderia dizer que a publicação de O Mundo Como Vontade e Representação (1819), obra magna do filósofo alemão, foi um ato de fé. Para além da floresta negra de seu pessimismo, Schopenhauer afirmou a vida com o ímpeto que o fez erigir sua obra. Assim, as confissões de Tolstoi insinuam que Schopenhauer não poderia sentenciar que não teve filhos e que não transmitiu a nenhuma criatura o legado de nossa miséria. 

*Flávio Ricardo Vassoler é doutor em letras pela Universidade de São Paulo, com estágio doutoral junto à Northwestern University (EUA)

Capa do livro 'Uma Confissão', de Lev Tolstoi 

Uma Confissão Autor: Lev TolstoiTradução: Rubens FigueiredoEditora: Mundo Cristão 128 páginas R$ 29,90

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