Uma lição sobre como fracassaram os esforços para pôr ordem na casa do terrorismo global

Livro de Ahmed Rashid diz que situação hoje é pior do que no 11 de Setembro

PUBLICIDADE

Por Caio Blinder , jornalista e escritor
Atualização:

Ahmed Rashid sabe demais e nos informa com excesso sobre paragens remotas, perigosas e voláteis na Ásia, mas sua advertência sobre a "descida no caos" no Paquistão, Afeganistão e outros "tãos" da região é vital. Seu livro Descent into Chaos (Viking) é uma lição sobre o fracasso americano e da comunidade internacional em pôr ordem no centro e no sul da Ásia - o lar do terrorismo global. A opção do governo Bush foi invadir o Iraque. O resultado é que, pela primeira vez desde a 2ª Guerra Mundial (em uma missão que durou quatro anos), os americanos combatem em duas frentes de batalha. Sete anos após a guerra do Afeganistão, Osama bin Laden supostamente está vivo, o Taleban ressurgiu, o Paquistão continua sendo um caldeirão (nuclear) de instabilidade e Rashid nos adverte que uma explosão pode acontecer no Usbequistão, a mais populosa ex-república soviética na Ásia Central, onde estão em conflito um Estado repressor e o fundamentalismo islâmico. Nas vizinhanças do Casaquistão (a terra de Borat), a coisa não está para brincadeira. Rashid costuma chegar antes, com seu profundo conhecimento daqueles cafundós e também acesso a fontes de primeira em Washington e Londres. Escritor e jornalista paquistanês, colaborador dos principais jornais americanos e britânicos (e também presença regular na BBC e CNN), Rashid publicou no ano 2000 o livro Taleban: o Islamismo Militante, Petróleo e o Fundamentalismo na Ásia Central. O Afeganistão nem sequer foi mencionado no debate de política externa entre os candidatos presidenciais Bush e Al Gore. O republicano nem sabia dizer quem era o presidente do Paquistão (Pervez Musharraf), o país cujo serviço de inteligência ajudou a criar o Taleban. Um ano mais tarde, com os atentados do 11 de Setembro e a guerra do Afeganistão, o livro se tornou um best seller. O Afeganistão deveria ter sido a "boa guerra" (ao contrário do Iraque) e Rashid apoiou a intervenção externa, mas hoje ele está desiludido. Houve o erro de cálculo estratégico de desviar recursos para o Iraque. A nova guerra convenceu Musharraf, um dúbio aliado americano que o governo Bush não levara a sério, da tarefa de estabilizar sua região e de que seria mais seguro para o Paquistão preservar seus interesses nacionais dando refúgio ao Taleban. Em uma incrível decisão adotada em dezembro de 2005, o ex-secretário de Defesa Donald Rumsfeld, um grande vilão no livro de Rashid, determinou que 3 mil soldados americanos se retirassem do sul do Afeganistão meses antes de o Taleban, que ressurgia, lançar sua maior ofensiva. Fiascos colossais aconteceram já em 2001. Osama bin Laden conseguiu escapar de Tora Bora e Rashid escreve que "oficiais paquistaneses ficaram espantados de que Rumsfeld não pusera sequer mil soldados americanos na batalha". Outra grande escapada na mesma época aconteceu em Kunduz (no noroeste do Afeganistão). Oito mil combatentes do Taleban, além de militantes paquistaneses e terroristas da Al-Qaeda, estavam cercados. Mas os americanos atenderam ao pedido de Musharraf para que dois aviões paquistaneses resgatassem centenas de pessoas sitiadas. Um escândalo, mas na avaliação de Rashid, tanto Rumsfeld como o vice-presidente Dick Cheney ainda consideravam Musharraf um aliado útil. O Afeganistão pós-Taleban é outra peça de indiciamento. Rashid considera o presidente Hamid Karzai um amigo, mas ele é foco de profunda desilusão. Karzai foi eleito em meio a altas expectativas, mas se revelou um líder fraco, incapaz de enfrentar o jogo duplo do Paquistão e de construir uma genuína democracia, sem falar de um Estado que funcionasse decentemente. A desatenção americana, claro, não ajudou. A opção de Karzai (talvez ele não tivesse outra) foi depender de líderes tribais, também enfronhados em um jogo duplo com o Taleban. Hoje a produção de ópio está em alta. Trata-se da maior atividade econômica do país, o que levou a uma maciça corrupção no governo, com parte dos lucros desviados para financiar as operações militares do Taleban. Os americanos estão finalmente incrementando suas tropas no Afeganistão e precisam implorar por um maior envolvimento dos demais países da Otan (a aliança militar ocidental). O Afeganistão deixou de ser visto como uma "guerra justa" na Europa e no Canadá (um dos países com maior contingente na frente de luta). Será um desafio preservar a missão ocidental, que vai exigir décadas para ser cumprida. Um fracasso poderá significar o fim da Otan como uma séria aliança militar e o nascimento de um Estado narcoterrorista no Afeganistão. Enquanto isso, acumulam-se os focos de instabilidade nas cercanias, em particular no Usbequistão. Há um tom hiperbólico na narrativa de Rashid. Ele diz "quando a era Bush está perto do seu final, o poder americano está despedaçado e a credibilidade dos EUA, em ruínas". Mas é sóbria a avaliação de que, em última instância, as estratégias de Bush no sul e centro da Ásia criaram uma crise ainda maior do que a que existia antes do 11 de Setembro. Caberá ao sucessor de Bush impedir que continue a descida no caos. *Caio Blinder integra a bancada do Manhattan Connection. É autor de Terras Prometidas (Garamont), livro de reflexões sobre a condição judaica

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.