Uma outra Inglaterra para George Bush

Em Camp David, discursos apontam mudança não só na ?relação especial?, mas no enfoque sobre o terrorismo

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Por Jonathan Freedland e The Guardian
Atualização:

Ele devia ir a Washington com mais freqüência. Gordon Brown talez temesse o encontro com George Bush, sabedor de que cada aparição que Tony Blair fez ao lado do presidente americano lhe custou um caminhão de votos. Mas a entrevista conjunta à imprensa, segunda-feira passada, favoreceu Brown. Em alguns momentos Bush foi condescendente, dizendo que Brown tinha "provado seu valor como líder" durante os ataques terroristas abortados de junho; ou eventualmente admitindo que estava se estendendo por tempo demais. Ao lado de Bush, Brown só precisou ler seu script para parecer um mestre em comunicação. Não foi só isso que correu bem para Brown. Ele queria que sua estréia em Washington não se parecesse em nada com os salamaleques trocados entre Bush e Blair, e teve sucesso. Foram-se os jeans apertados que espremem a virilha e entraram os ternos. Nada mais de "George", agora foi "senhor presidente". Nada de abraços entre Laura e Cherie: desta vez, as mulheres ficaram em casa. Também acabaram os tapinhas nas costas, substituídos por apertos de mão. Todos os sinais eram da mesma mensagem - estamos tratando estritamente de negócios. Superficialmente, pode ter parecido que linguagem corporal e vestuário foi tudo que mudou. Mas uma leitura mais acurada das palavras de Brown em Camp David e todo o conteúdo de sua viagem aos Estados Unidos, incluindo a aparição na ONU no dia 31, sugerem outra coisa. Indicam uma mudança não apenas na chamada relação especial, mas um novo posicionamento estratégico mais profundo no qual Brown fez questão de não inisitir na "guerra ao terrorismo". Tudo isso ficou visível nas grandes fissuras que o primeiro-ministro abriu entre ele e o presidente. Sim, houve várias declarações de propósitos e valores compartilhados. Mas, enquanto o presidente dizia que o Ocidente se confronta com "uma ideologia da escuridão", Brown declarava que o terrorismo não é uma causa, é um crime. Isso nega ao terrorista a dignidade de inimigo e o classifica como criminoso vulgar, a ser caçado pela polícia e serviços de informação. Brown também foi específico: o conflito não é com o "terrorismo" - abstrato -, mas com o "terrorismo da Al-Qaeda". As diferenças foram ainda mais evidentes em relação ao Iraque. Bush ainda fala com entusiasmo fanático da intervenção; Brown fez apenas a declaração seca de que a Grã-Bretanha tem "deveres a cumprir e responsabilidades a manter". Restou a Bush dizer que "Gordon Brown entende que o fracasso no Iraque será um desastre para a segurança de nossos países". O primeiro-ministro nada disse para confirmar essa declaração sobre seus pontos de vista. Bush ainda se refere ao Iraque como a principal frente na guerra ao terrorismo. Para Brown, é o Afeganistão. Acima de tudo, Brown advertiu os EUA para uma eventual retirada das tropas britânicas do Iraque, dependendo do que disserem os comandantes militares em terra. Como essa é a formulação que o próprio Bush usa, ele não pôde fazer objeções. Isso foi o mais longe que se pôde razoavelmente esperar do primeiro-ministro britânico para manter uma certa distância do presidente americano. Não, ele não chamou Bush de pistoleiro texano transtornado, mas também não retribuiu nenhum dos efusivos cumprimentos que recebeu de Bush. Bush tentou esquentar o clima com histórias de escoceses. Brown disse que as conversas tinham sido "completas e francas" - jargão diplomático para definir uma rixa. Se o objetivo de Brown era afastar-se do abraço pegajoso que Bush e Blair compartilhavam, certamente funcionou. Uma manchete do Washington Post de quarta-feira definiu o comportamento de Brown como "mais de buldogue que de poodle". A equipe de Brown teria adorado ver esse veredicto repetido nas primeiras páginas de jornais britânicos. Mas o que houve foi mais que um posicionamento político, o de fugir de um presidente americano cujo abraço tem comprovado ser tóxico. Por trás da atitude de Brown está uma profunda mudança na que tem sido a principal questão geopolítica desde setembro de 2001. Simplesmente, Brown vê a luta contra o islamismo radical de forma completamente diferente da de Bush e, conseqüentemente, de Blair. Embora o enfoque Bush-Brown tenha sido nos chamados regimes fora-da-lei que representam uma ameaça para o Ocidente, e no uso da força para eliminá-los, Brown prefere uma batalha pelos corações e mentes do mundo muçulmano. Enquanto a comparação favorita da era Bush-Blair seja a 2ª Guerra Mundial, contra Hitler e o fascismo, a de Brown é mais a da Guerra Fria com o comunismo soviético. Esse conflito foi longo e, é claro, teve uma dimensão militar que se estendeu a uma corrida armamentista nuclear e conflitos por procuração através do globo. Mas não menos importante, acredita Brown, foi a derrota da justificativa intelectual para o comunismo. Num artigo publicado segunda-feira no Washington Post, Brown lembrou a importância dos laços e intercâmbios culturais e educacionais entre o Ocidente e aqueles atrás da Cortina de Ferro que, sistematicamente, minaram a crença dos últimos no sistema soviético. Isso leva a uma possibilidade intrigante - a de que Brown esteja defendendo um processo de engajamento cultural sistemático com a sociedade civil do mundo árabe e muçulmano envolvendo escolas, universidades, museus, igrejas, sindicatos patronais, cujo engajamento durante a Guerra Fria ele invoca tão calorosamente. Talvez o mais importante seja que Brown queira que o Ocidente recupere a posição de superioridade moral que acredita ser essencial para a vitória em qualquer luta ideológica. Há muito ele defende a luta contra a aids, pobreza e dívida externa. Mas agora há uma urgência maior. Se o Ocidente for visto como agindo com justiça, então será muito mais difícil para Osama bin Laden vituperar contra o perverso imperialismo ocidental. Este é o contexto correto para julgar a atuação de Brown na ONU na quinta-feira. Com uma paixão que não mostrou em Camp David, ele convocou uma "coalizão de consciência" para a adoção das metas de desenvolvimento do milênio e para o envio de 19 mil capacetes-azuis da ONU a Darfur, Sudão - porque acredita nessas providências, mas também porque considera que neutralizarão a retórica da Al-Qaeda. Isso resulta numa nova filosofia no conflito contra a jihad: em lugar de simplesmente instalar novos regimes no mundo muçulmano, ela procura provar que é moralmente superior ao islamismo violento. Isso teria enormes implicações, invalidando quase todos os aspectos da "guerra ao terrorismo" como tem sido conduzida até agora, de Guantánamo a Abu Ghraib, passando pela própria invasão do Iraque. Habilmente, até agora Brown trouxe Bush para seu campo, por exemplo, conquistando o apoio dele para o caso de Darfur. Mas precisará de outros aliados, motivo pelo qual seu elogio em Camp David foi para os EUA em vez de para a administração Bush, e pelo qual fez questão de visitar os líderes do Congresso. De agora em diante, a relação especial será com os Estados Unidos e não com a Casa Branca de Bush. No mínimo porque Brown sabe que Bush estará fora em 18 meses e ele tem toda a intenção de permanecer no cargo muito mais tempo.

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