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Uma só Cuba? Esqueça: são muitas

As diferentes faces do país mostram uma pluralidade que escapa dos slogans e desejos oficiais de uniformidade, impossível de se imaginar 20 anos atrás

Por Leonardo Padura
Atualização:

A imagem de uma Cuba única e homogênea é cada vez mais um sonho que se volatiliza. A ilha socialista do Caribe, com partido e economia únicos, política e projeção social unânimes, foi cedendo o passo a uma diversidade social que aponta para um pluralidade difícil (diria mesmo impossível) de imaginar há 20 anos.   Veja também: Nas trilhas da revolução Tratamento de imagem Uma carcomida relíquia da Guerra Fria O fim de um longo jejum religioso Las Vegas do Caribe Linha do tempo  A Revolução Cubana nas páginas do Estadão  Debates Estadão: O futuro de Cuba pós-Fidel  Dias atrás, esta Cuba diferente se manifestou de uma maneira extremamente simbólica quando, graças ao seu Festival do Novo Cinema Latino-Americano (2–12 de dezembro), um dos cinemas emblemáticos da capital exibiu, para uma sala lotada, as duas partes do filme Che, de Steven Soderbergh, uma obra épica que mostra a vida e morte do revolucionário argentino Ernesto Guevara em sua epifania cubana e em seu sacrifício boliviano. Entretanto, a menos de dois quilômetros, em outra sala histórica da capital cubana, naquela mesma noite, foi apresentado em estréia nacional, também para uma platéia transbordando de espectadores, o filme El Cuerno de la Abundancia, de Juan Carlos Tabío (co-diretor do famoso Morangos com Chocolate), uma história tragicômica (inspirada em fatos reais) de cubanos de hoje, pessoas comuns e desesperadas, que se agarram ao sonho de uma herança salvadora para encontrar a solução de todas as carências de sua vida cotidiana, repleta de necessidades e exigências não satisfeitas. Mas o melhor é que na mesma noite, quase no mesmo ambiente físico dessas projeções cinematográficas, cujos temas marcam dois momentos culminantes e distantes da vida cubana, em uma via de Havana, conhecida como Avenida dos Presidentes, reuniam-se, como em cada sábado, centenas de adolescentes e jovens cubanos para cantar, conversar, beber e esperar a madrugada, entrincheirados em seus respectivos grupos, embora intercambiáveis, das mais díspares e estranhas tribos urbanas da pós-modernidade: freaks, emos, rastas, roqueiros, etc., amantes da música, da leveza, do inconformismo e até da angústia e da depressão, e alheios, quase todos eles, às filosofias e às políticas. Desde que, nos anos 90, ocorreu a profunda crise econômica batizada pelo governo cubano de "período especial em tempo de paz", e se quebrou o teto protecionista que o Estado pretendia erguer sobre cada habitante do país, a dispersão foi penetrando na sociedade cubana. Surgiram diferentes modos de entender sua realidade, diferentes modos de vê-la, de interpretá-la, e múltiplas maneiras de vivê-la. Quando a sociedade quase modelar dos anos 80 colidiu com a realidade da crise e com as carências mais absolutas, comportamentos impróprios, quase desaparecidos, despertaram (tóxico-dependência, prostituição, proxenetismo, mais corrupção); houve uma redescoberta da religiosidade em todas as manifestações imagináveis; e apareceu a diferenciação econômica entre os que tinham acesso ao dólar e seus privilégios e os que viviam unicamente de pesos cubanos, com suas desvalorizadas possibilidades de sobrevivência. Nesses anos também foi semeada a febre da fuga, que afetou principalmente as gerações mais jovens de cubanos, dispostos a buscar em outros lugares espaços próprios para viver. Cuba transformou-se desde então em um país de muitas arestas e rostos: ao lado da Cuba oficial da imprensa e da televisão havia um país underground, cercado pela marginalidade, que palpitava em bairros e cidadezinhas, e uma miragem turística, somente para estrangeiros, em balneários e clubes exclusivos. Por isso, não por acaso, na Cuba atual um dos modelos de sucesso pode ser um personagem como o regatonero (intérprete do regatón, uma espécie de rap hispano-caribenho), ente agressivo e cultor da marginalidade cultural em cujo corpo costumam brilhar várias correntes, algemas, anéis e dentes de ouro, graças ao poderio econômico que sua música (vulgar e sem graça, na maioria dos casos) lhes proporciona. Muitos deles, na companhia de belas jovens em flor e por vezes até de guarda-costas grosseiros, gritam aos quatro ventos que a mediocridade e a habilidade podem ser meios de vida muito lucrativos (até mesmo em Cuba), muito mais, evidentemente, do que uma carreira na medicina ou engenharia que, na prática, tem como compensação econômica apenas um insuficiente salário do Estado. Até que ponto a sociedade cubana tem consciência dos movimentos tectônicos que se geram em suas profundezas é um mistério em um país onde se pratica pouco e mal a cultura do debate (embora cada vez mais se fale e até mesmo se escreva sobre essa diversidade) e onde a crítica social é digerida com dificuldade (não seria estranho, por exemplo, se alguém me acusasse de "inimigo do povo" por escrever esta coluna). O que está demonstrado é que são milhões os cidadãos cubanos que acumulam insatisfações com os métodos, as políticas, as realidades que há anos são vividos neste país e exigem as "mudanças estruturais e conceituais" que começaram a se organizar, mas ultimamente frearam seu progresso, para desespero de muitos. A diversidade social cubana é uma realidade que escapa dos slogans e dos desejos de uniformidade. Na era da internet, a informação deixou de ser monopólio e o mundo se tornou mais acessível. Hoje, apesar de períodos de imobilismo, Cuba parece ser um país em movimento que investiga rotas para atender sub-repticiamente a suas necessidades acumuladas e emergentes. Os diferentes rostos do país são a expressão de realidades múltiplas e o resultado de buscas sociais nascidas da necessidade, das carências e da heterodoxia, como esses jovens freqüentadores noturnos da Avenida dos Presidentes, que se declaram emos, freaks ou rastas, enquanto na tela de um cinema próximo passa a epopéia de Che Guevara e, em outra, a de alguns cubanos que esperam a salvação de uma multimilionária herança caída do céu. *Leonardo Padura é escritor e jornalista cubano. Seus romances foram traduzidos para várias línguas e sua obra mais recente, La Neblina del Ayer (Tusquets), ganhou o Prêmio Hammett de melhor romance policial em espanhol de 2005

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