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Variações paradoxais

Ao apelar para Bach, o Festival Música Nova municia o convencional contra o contemporâneo

Por João Marcos Coelho
Atualização:
S11 ARQUIVO 19/02/2013 SABATICO MUSICA Johann Sebastian Bach foi um compositor, cantor, maestro, professor, organista, cravista, violista e violinista da Alemanha. Nascido em uma família de longa tradição musical, cedo mostrou possuir talento e logo tornou-se um músico completo. FOTO DIVULGACAO Foto: DIVULGAÇÃO

O Festival Música Nova, nascido em Santos em 1962 com Gilberto Mendes, vem sendo, há 48 anos, o único termômetro transparente e democrático da criação contemporânea. Seu idealizador sempre adotou corajosa postura pluralista, mesmo quando a vanguarda radical patrulhava restos ou sinais de nacionalismo na música aqui produzida. Nos anos 1970 e 80, foi o primeiro a abrir-se à música politicamente engajada. Ou seja, o evento sempre foi inclusivo, como seu genial criador: “Nunca fui ligado a essas coisas de grupo, a essas limitações a paixões fundamentalistas só por violão, ou ópera, ou mesmo música eletrônica, de vanguarda. Amo a diversidade, é onde busco a unidade do que faço. O novo, o experimental, a invenção, podem estar em qualquer música que a gente faça, em qualquer gênero ou linguagem que a gente desenvolva, cult ou pop. Não só na linguagem da Neue Musik franco-alemã”.

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A 48ª edição, aberta essa semana, decidiu celebrar “a música nova de todos os tempos”. Um paradoxo que fragiliza ainda mais a já difícil situação da criação contemporânea, extirpada da vida musical convencional em suas manifestações mais radicais e só permitida em suas franjas quando soa amaciada (ou seja: neopopulista). Uma postura mercadológica dessas justifica o comportamento neopopulista dos organismos mais relevantes da vida musical, as orquestras sinfônicas, que vestem cada vez mais o figurino pós-moderno e rejeitam com gosto a música de invenção de fato.

Para deixar bem claro o guarda-chuva conceitual desse festival, as Variações Goldberg, compostas 273 anos atrás por Johann Sebastian Bach, conviveram, no concerto de estreia dessa semana, com peças de Ligeti, Ohana, Martinu, Henze e... Piazzolla. Soa como provocação, ou, no linguajar de antigamente, “factoide”. Impossível levar o slogan a sério, até porque não retrata o que está acontecendo nos 15 concertos: 99% por cento da programação pratica um saudável pluralismo, abraçando todas as tendências contemporâneas, de Flo Menezes ao nacionalismo de Guerra-Peixe, dos jovens compositores brasileiros mais radicais e os já bem postos eletroacústicos e espectralistas cinquentões até Villa-Lobos, “historicamente execrado pelas primeiras fileiras da velha vanguarda”, segundo Gilberto Mendes e Rubens Ricciardi, consultor artístico e diretor artístico respectivamente, no texto de apresentação.

Falei pós-moderno e me lembrei de outra provocação, a entrevista concedida essa semana à Cultura FM por Augusto de Campos (disponível na íntegra no portal da rádio). O poeta de 83 anos que promoveu a abertura dos portos à música nova no país permanece investido da ira dos justos, indigna-se ao constatar que no Brasil “a música ainda parece ter terminado com Stravinski”. Dispara igualmente contra o pós-modernismo, que para ele não passa de pré-modernismo. 

Nem tanto à terra, nem tanto ao mar. Ambos têm razão, ou melhor, razões - mas em parte. No caso de Campos, é preciso conformar-se com que a vanguarda, hegemônica até os anos 1960/70, hoje ocupe apenas um espaço pequeno entre os nichos das músicas contemporâneas. Tem direito de existência, no entanto. Como, aliás, corretamente aponta Rubens Ricciardi, ao afirmar que a vanguarda neue musik gerou conformismo. Mas incorretamente chama a vanguarda de ridícula e a acusa de repetir o que já se fez meio século atrás. Repetem muito mais bisonhamente o passado mais distante os compositores tonais, lambuzando-se em soluções já repetidas ad nauseam, ou namorando toscamente a música popular. 

Temos de nos conformar. Não vivemos mais no tempo em que a música era como o jornal impresso: lida sofregamente na hora, mas no dia seguinte já estava embrulhando peixe na feira, trocada pela “música do dia”, como pãozinho quente. Hoje, as obras do nosso tempo nem embrulham peixe, ficam empoeiradas numa gaveta. São previamente condenadas a uma estreia, são tocadas uma única vez e ensanduichadas entre um Beethoven e um Tchaikovski para que sua estranheza ressalte ainda mais aos ouvidos narcotizados do público. Já as do passado, “obras-primas”, são repetidas “n” vezes para um público que se comporta como as crianças que gostam de ouvir mil vezes a mesma historinha (há duas semanas, o concerto para violino de Beethoven foi tocado seis vezes em sete dias seguidos na Sala São Paulo).

É real a hostilidade entre a vida musical tradicional e a música contemporânea. Por acaso as Goldbergs entraram na programação deste ano para romper esse fosso? Há 48 anos o festival mantém-se como cristalino espelho do caleidoscópio da produção contemporânea brasileira - com as incursões invariavelmente inteligentes e certeiras de Gilberto Mendes para o que se faz no mundo. Não precisava recorrer a factoides como escalar Bach como seu garoto-propaganda, trazendo-o a fórceps para o século 21 a fim de vender seu peixe. Na verdade, está só dando mais munição para a vida musical convencional sentir-se convicta de que está certa ao afastar a música mais radical de suas amplas e ilustres salas de concerto.

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João Marcos Coelho é jornalista, crítico musical do Estado e autor, entre outros, de No calor da hora - música e cultura nos anos de chumbo

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