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Visão cambaleante

Antigamente os jovens não tinham carro nem dinheiro. Hoje bebem 10 chopes e pegam o volante

Por Monica Manir
Atualização:

A lei seca apertou o cinto de quem dirige com álcool no sangue. Agora, quem apresentar 2 decigramas da bebida por litro sanguíneo, o equivalente a uma tulipa de chope, será multado em R$ 955, perderá o direito de dirigir e terá o veículo retido. Passados 6 decigramas - ou duas tulipas -, a pena terá o colarinho da prisão. Do 15º andar do prédio onde clinica, Drauzio Varella sobrevoa o assunto. Começa aprovando a lei. "É perigoso dirigir alcoolizado? Pode-se fazer mal a terceiros? Então o Estado tem de agir com energia." A conversa logo atinge o vôo panorâmico a que se propôs: falar de alcoolismo. Com a clareza que lhe é típica, o médico trata do assunto muitas vezes se colocando como personagem. Exemplo: quando soube dos fatores de risco do alcoolismo, redobrou a atenção consigo mesmo. Não tem alcoólatra na família, mas tem tolerância à bebida. E muitas vezes está um copo à frente dos demais. Prestes a festejar o 29º aniversário de abandono do cigarro, Drauzio não deseja outra dependência. Quer é alertar para a dificuldade de uma política global de combate ao uso nocivo do álcool, já que uma grande massa de pessoas bebe sem causar problema social nem particular. Como acertar o alvo? Como botar freio no consumo? Como evitar moralismos? Primeiro assumindo que alcoolismo, o verdadeiro, é doença. Mas daí até um programa de TV sobre o assunto ainda vai chão. A punição funciona contra o vício? Quando tem fiscalização eficiente, funciona. Na Suécia, por exemplo, as festas são absolutamente esquizofrênicas: metade dos convidados ri, brinca, bebe, enquanto a outra metade fica sentada olhando o relógio. Esses últimos são os que vão guiar o carro de volta pra casa. Quando você sabe que vai cair na malha do bafômetro, não bebe na hora de dirigir porque as punições são pesadas. Em Estocolmo, cada cidadão passa pelo teste uma, duas, três vezes ao ano. Em muitas cidades dos EUA é assim também. Em Washington, vi policiais fiscalizando os carros com uma equipe de televisão junto. Colocavam um barbante na rua e faziam o motorista andar sobre ele. Você via o cara alcoolizado na TV. Imagina o que acontece com a sua reputação ao ser visto bêbado na rua. Tem esse viés sério e intimidatório. Há um viés moralista na lei seca? Não é função do Estado proteger o cidadão do mal que queira fazer contra si mesmo, senão ele teria de colocar uma tela na janela das pessoas porque elas podem se jogar do prédio a qualquer momento. Se eu quiser pegar uma garrafa de pinga e tomá-la inteira a esta hora da manhã, isso é problema meu. Mas é função do Estado proteger o cidadão contra o mal que terceiros possam fazer contra ele. Dirigir alcoolizado é perigoso? É perigoso. Pode-se fazer mal a terceiros? Muitos fazem. Nisso o Estado tem de agir com energia. É uma política pública de proteção à saúde. Em todos os dias desta semana as blitze da lei seca prenderam motoristas que ingeriram álcool. Bebe-se mais hoje do que antes? Acho que sim, e por várias razões. Primeiro porque o número de jovens é bem maior. Em segundo lugar, o poder aquisitivo aumentou. Na minha geração, a gente saía e bebia também, mas não tínhamos dinheiro nem carro. Voltávamos a pé ou de ônibus. Hoje muitos jovens recebem mesada, que dá perfeitamente para tomar dez chopes. Em terceiro lugar, as mulheres mal bebiam, havia uma repressão social forte. Quando saíamos em grupo, nós tomávamos chope e elas, refrigerante. Com a emancipação feminina, criou-se o caminho. E tem a publicidade... Isso de dizerem que quem é contra a publicidade de bebida alcoólica é contra a liberdade de informação é uma vergonha. Se olhar as propagandas de bebidas alcoólicas, especialmente as de cerveja, verá que usam a mesma estratégia que os fabricantes de cigarros utilizaram durante décadas: publicidade voltada para adolescentes; na verdade, para as mulheres adolescentes, porque aí você dobra o mercado. Não foi assim com o cigarro? Anunciavam cigarros teoricamente mais suaves, que na verdade faziam mais mal do que os outros. Com isso conseguiram aumentar muito o consumo. Na semana passada, a Ambev patrocinou as festas juninas de um colégio particular tradicional em São Paulo, o que gerou protestos. Uma indústria de cerveja em uma festa de escola banaliza o consumo da bebida? Eu acho que é a mesma coisa que a publicidade de cigarro na escola. Não que cigarro seja a mesma coisa que álcool. As drogas são muito diferentes. Com o álcool, você tem uma grande massa de pessoas que bebe sem causar nenhum tipo de problema social nem individual. Uma porcentagem pequena dessa massa faz uso nocivo do álcool. No cigarro não ocorre isso. Praticamente não existe o fumante ocasional. Você pode dizer: "Ah, conheço uma pessoa que fuma um cigarro por dia, depois do jantar". Tá, mas quantas você conhece que fumam um cigarro depois do jantar e quantos fumam um maço por dia? Cigarro é uma droga compulsiva. Nesse sentido, é muito pior do que o álcool. O cara começa a fumar e não consegue parar. A estratégia para coibir o consumo de ambos deve ser diferente? O álcool não é uma droga para a qual se diga: "Vamos proibir porque, senão, essa pessoa não pára de beber". Não é assim. Além disso, o uso moderado de álcool, com um ou dois drinques por dia, não faz mal a ninguém, até reduz o número de doenças cardiovasculares. Por outro lado temos o alcoolismo, mas há muito preconceito nessa história. Um cara que passa uns meses bebendo é alcoólatra? Não necessariamente. O que caracteriza o alcoolismo? A falta de controle. O alcoólatra é aquele que bebe e não pára de beber. É o cara que vai à festa e diz: "Hoje não vou beber porque, da vez passada, dei vexame". Na primeira rodada ele não bebe, na segunda ele resiste, na terceira fala: "Uma cervejinha não vai me fazer mal". Quando vê, tomou uma garrafa de uísque. Não consegue botar um freio diante da bebida. Quais os fatores de risco? Há os que bebem pelo prazer de sentir o gosto da bebida e os que bebem para sentir o efeito do álcool. O risco é o cara que toma qualquer coisa, não está interessado em conhecer o sabor do vinho, por exemplo. Outro fator de risco é a velocidade com que se bebe. Tem dez pessoas à mesa: a primeira já está acabando o chope, enquanto a última mal tocou no copo. A primeira está mais propensa. Um quarto fator é a resistência à bebida. Quanto maior a tolerância, maior o risco de alcoolismo. A tolerância aumenta à medida que se bebe mais? Sim. Para conseguir o mesmo efeito, você tem que aumentar a dose. Um estudo americano pegou filhos de alcoólatras, estudantes do colegial, que não bebiam nada por causa de dramas familiares terríveis com o alcoolismo. Do outro lado estavam jovens da mesma idade, sem casos de alcoolismo na família, mas que enchiam a cara de vez em quando. Depois de 20 anos, em qual grupo havia o maior número de alcoólatras? Entre os filhos de alcoólatras, aqueles que juravam que não beberiam. Interessante que, na fase inicial, os que bebiam ocasionalmente tinham uma resistência menor à bebida, ou seja, ficavam mais bêbados do que aqueles que não bebiam, mas eram filhos de alcoólatras. O fator genético pode ter interferido nesse resultado? O fator genético é inegável. Há estudos feitos com irmãos gêmeos univitelinos que cresceram separadamente, nem se conheceram e, quando um deles virou alcoólatra, o risco de o outro também ter virado foi alta. Mas existe o fator ambiental. Sem dúvida. Nenhum gene controla nada, só aumenta a probabilidade de um comportamento. Se você nasce na Arábia Saudita, não pode beber. Não entra em contato com o álcool, não vai ser alcoólatra. A busca incessante de prazer no mundo moderno incentiva o consumo da bebida? O mundo moderno acelera. Cada descoberta incorporada ao dia-a-dia é para acelerar o trabalho. Hoje você é obrigado a consultar dez vezes o google para checar a informação, seu celular toca, não tem fim. Você quer uma compensação, uma droga que a relaxe um pouco, que lhe dê mais prazer. Nesse sentido, o álcool é a droga ideal. Você fica mais sociável, sai do inferno para o paraíso em segundos. O problema é a falta de trava por causa da tolerância. A tolerância é o drama de toda droga psicoativa. É por isso que todo maconheiro velho se queixa da qualidade da maconha atual. Mas a atual tem quase o dobro da concentração que tinha há 30 anos! No entanto, o cara não sente mais aquele prazer. Uma pesquisa recente, feita na Universidade da Califórnia, chegou a uma proteína que teria eliminado o desejo dos ratos de consumir álcool. Além disso, ela evitaria efeitos colaterais típicos dos medicamentos contra o alcoolismo, como a redução de sensação de prazer para outras coisas. Dá para apostar em uma pesquisa assim? É pouco provável que esses mecanismos que conferem prazer tenham uma via comum. Eles correm por circuitos diferentes, são vários centros. O centro de prazer do paladar não pode ser igual ao do prazer sexual. Como funcionam esses centros? Eles ativam circuitos de neurônios chamados circuitos da busca. Quando você come uma coisa gostosa e passa uns dias sem comê-la, o cérebro manda que busque novamente aquele prazer. Vale para a atividade sexual, para a cocaína, para a compra compulsiva. Você gasta R$ 5 mil em roupas, sofre para pagar o cartão de crédito, mas repete a dose. Por que faz isso? Porque, uma vez ocorrida essa ativação da busca, ela não desativa mais, mesmo que se deixe de ter prazer com a atividade. Você acha que o cara que acorda, vai para a padaria, toma uma cachaça e cai no chão está tendo algum prazer? Prazer nenhum, mas esse freio não existe para ele. Ele tinha muito prazer antes e o busca novamente. Os rótulos no verso dos maços de cigarros seriam eficazes nos rótulos das garrafas? Acho que esses rótulos nos maços são legais. Em vez de deixar os fabricantes colocarem passarinhos voando, coloca-se um doente com câncer de laringe respirando com a cânula. Muitos fumantes criticam essas imagens nos rótulos dizendo ser drásticas demais. Nada é mais drástico do que o cigarro. É o maior crime da história do capitalismo, que provoca milhões e milhões de mortes todos os anos. Agora, apesar de o cara olhar aquele doente agonizando no rótulo, ele não pára de fumar, porque a dependência química é uma doença, justamente essa doença de buscar um prazer que não existe mais - e a qualquer preço. O fígado está se acabando, tem água juntando na barriga, os pés estão inchados e a pessoa continua a beber mesmo passando mal. Você precisa de muita força para reagir contra ela. Só que a dependência química quebra o caráter do dependente. Ela mina essa força que poderia levar a pessoa a ficar livre da droga. Como se explica o fato de algumas pessoas largarem o vício de um dia para o outro? Largam com muito sofrimento e por um processo racional. Fale para um fumante que ele não vai mais fumar: "Mas o cigarro é meu companheiro, meu amigo nas horas incertas". A mesma coisa com o álcool: "Nunca mais vou poder tomar um chope ou um vinho num restaurante?" É ininteligível para quem não bebe ou não fuma, essa experiência é intransferível. Parei de fumar há 29 anos. Se acender um cigarro aqui, vou provavelmente ficar tonto, mas com certeza vou enlouquecer de vontade de fumar. Você deixa de ser fumante, como deixa de ser alcoólatra. Ex-dependente, jamais! Esses mecanismos cerebrais são muito poderosos. E o rótulo na garrafa? Olha, eu acho que deve funcionar, mas o impacto é pequeno. No caso do álcool, você vai mostrar o quê? Como fica o fígado? Tem tanta gente que bebe e não fica com o fígado assim. No caso do cigarro, você começa a fumar, vai ter um encontro marcado com a tragédia. Pode ser o câncer de pulmão, pode ser o enfisema, mas você tem uma deterioração progressiva da sua condição física. Com o álcool, essa linha só é nítida para os que exageram. Não pode tratar todos da mesma forma. O que pode ser feito, então? Acho que temos de dar aula de alcoolismo e drogas em geral para as crianças. É a educação que pode estabelecer essa diferença. E tem o exemplo doméstico. Que moral tem um pai que fica bêbado dizer a um filho que não pode beber? Se tivesse um problema com o alcoolismo, quem procuraria? Eu procuraria os Alcoólicos Anônimos, não iria ao médico. Os A.A. são a única condição na medicina em que um grupo de auto-ajuda funciona melhor do que tudo o que a medicina tem a oferecer. Essa situação começa a se modificar agora com as novas drogas e os médicos se interessando pelo alcoolismo. Há 10, 20 anos não havia médicos cuidando disso. Pensa em fazer um programa de TV sobre alcoolismo? Já pensei várias vezes, mas tenho dificuldade em levar a idéia adiante. Por quê? Você convence poucas pessoas com argumentos racionais. Nos programas que faço, tento sempre usar argumentos emocionais. No momento, fazemos uma série sobre transplantes. Uma coisa é dizer que 65 mil pessoas estão nessa agonia de esperar um órgão. O número é alto, mas, diante de 180 milhões de habitantes, fica abstrato. Outra coisa é conhecer as pessoas que estão na fila, o drama que eles e a família vivem. Ao filmar essas pessoas, você não fere nenhum padrão ético. Ao contrário: chama atenção para o problema, e as pessoas que estão na fila se submetem a fazer o papel de personagem porque sabem que estão colaborando para ajudar outros na mesma situação. Se for fazer uma série sobre alcoolismo, tem que pegar gente com problema com o alcoolismo. Os que se livraram do vício podem achar que ajudarão o outro. E os que estão com o problema? Vamos expor essas pessoas para o Brasil inteiro? Que repercussões familiares, sociais e no trabalho isso vai ter? Ainda não encontrei uma fórmula para abordar o tema. Mas acho muito interessante.

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