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Vistos como doenças ou sobrenaturais, pesadelos inspiraram artistas

Para Jorge Luis Borges, 'os sonhos são o gênero; o pesadelo, a espécie'

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Os sonhos são o gênero; o pesadelo, a espécie. Com esta singela e acurada distinção, o onirólogo amador Jorge Luis Borges abriu uma conferência em Buenos Aires, que lhe fora estimulada pela releitura de alguns livros de psicologia sobre sonhos e que seria incluída em Borges, Oral & Sete Noites (1980). Começou discordando do húngaro Gustav Spiller, autor de The Mind of Man (1902), que situava os sonhos no plano mais baixo da atividade mental. Para Borges, não existia diferença em nossa atividade mental, despertos, adormecidos ou sonhando. 

Obra 'Pesadelo' (1781), do pintor suíço Henry Fuselli Foto: DETROIT INSTITUTE OF ARTS

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Incomodava-se por não podermos examinar os sonhos diretamente, só falar deles indiretamente, da memória dos sonhos, submetendo-os a uma reprodução linear, que pouco ou nada tem a ver com sua narrativa própria, múltipla e simultânea. Sempre os aprimoramos, acrescentou. Daí sua crença de que o sonho é “a atividade estética” que há mais tempo praticamos. Em seguida, sem deixar de lado o gênero, concentrou-se na espécie, no pesadelo, que afinal era o tema da conferência.

Na Antiguidade tinham o pesadelo como uma doença. Hipócrates o filiava aos humores da digestão, ou melhor, da indigestão: exagerou na comida, noite mal dormida. Não obstante, as mentes mais sugestionáveis do populacho já o associavam a uma criatura maléfica, despachada do além pela deusa Hécate e frequentemente encarnada num cavalo sobrenatural, vindo do mundo dos mortos, para esmagar o corpo abjeto de suas vítimas. 

Explorada e satanizada pela Igreja, na Idade Média, essa visão supersticiosa do pesadelo passou do estágio da doença física para o do fenômeno diabólico, misturando-se à bruxaria, sua mais duradoura identificação – até que, no final do século 19, trocou o domínio da demonologia pela psicanálise, que o investigou a fundo como uma anormalidade mental específica, “uma perturbação qualitativa do sono”. 

Borges desapreciava o espanhol “pesadilla”; o diminutivo “parecia tirar-lhe a força”, dizia. Considerava todos os substantivos estrangeiros mais fortes: do inglês nightmare (literalmente, a “égua da noite”) ao latino íncubus (o demônio que oprime aquele que dorme e lhe inferniza o sono), passando pelo grego efialtes, o francês cauchemar etc. 

Confessou ter dois pesadelos básicos, envolvendo labirintos, espelhos e máscaras, e do mais terrível (ele acordando e dando de cara com um rei sentado em sua cama) extraiu um soneto. Fascinava-o nossa capacidade para acordar todas as manhãs “mentalmente sãos” depois de atravessar aquele labirinto de sonhos aflitivos, aquele “dédalo de pesadillas”. 

De qualquer modo, enfrentar uma noitada de pesadelos será sempre preferível a uma tranquila dormida que aflua a um pesadelo real, como o vivido por quem está encarcerado, moribundo, numa guerra ou endividado até o pescoço. No Brasil atual, em que nos últimos tempos tudo se inverteu, meu pior – e às vezes único pesadelo – começa justamente quando eu acordo. 

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Borges transita, como de hábito, por uma legião de autores – de Homero e Dante a Shakespeare, De Quincey e Poe – mas passa ao largo de Freud, Jung, Jones e demais onirólogos consagrados pela psicanálise. 

Apenas a partir das instigantes ilações de Borges poderíamos ampliar a cauchemarderie a outros limites, à ficção de Kafka (A Metamorfose talvez seja o mais poderoso relato de um pesadelo), Joyce (o sonho em looping de Finnegans Wake), Melville (os tormentosos sonhos do capitão Ahab com a baleia Moby Dick), o Maupassant de Le Horla (em que o Brasil entra com seu pestilento calor tropical), o Cortázar de Pesadillas (metafórico pesadelo com as botas militares do golpe de 1976, na Argentina). 

Sem menosprezar o cinema, que parece ter sido inventado para traduzir em imagens as alucinações mentais, em decúbito ou de pé. Goya, Munch, o suíço Heinrich Füssli, Gauguin, Dali fizeram sua parte, figurando monstros associados ao pesadelo, especialmente Füssli, o mais reverenciado catalisador da mórfica figura medieval que satanicamente nos oprime o peito durante a noite. Mas nada se compara ao impacto emocional proporcionado às plateias do cinema expressionista alemão, aos filmes de horror em geral e, notadamente, às vertigens de Hitchcock

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“Eu lido com pesadelos”, vangloriava-se Hitchcock, isento de modéstia e qualquer prova além de seus próprios filmes, fossem eles diretamente ligados à psicanálise, como Quando Fala o Coração (Spellbound), ou dramatizações de graves transtornos psíquicos, como Um Corpo que Cai (Vertigo), Psicose e Marnie. Em todos eles, a morte ronda o espetáculo. A morbidez é um elemento indissociável do pesadelo, e não somente porque o elfo que desde a Idade Média o simboliza nos comprime o peito, como se nos quisesse sufocar. Por trás dos traumas de Gregory Peck em Spellbound, James Stewart e Kim Novak em Vertigo, Anthony Perkins em Psicose e Tippi Hedren em Marnie há um crime. O romance francês de Boileau e Narcejac que deu origem a Vertigo intitula-se D’entre les Morts

Se todas as palavras que traduzem pesadelo sugerem algo sobrenatural, não seriam os pesadelos “estritamente sobrenaturais”?, perguntou-se Borges ao concluir sua conferência. Não sem antes insinuar que os pesadelos podiam ser “frestas do inferno” e que nos pesadelos “estivéssemos literalmente no inferno”. 

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