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Voluntários do perigo

Convenção de Genebra diz que agentes humanitários devem ser protegidos. Mas violações raramente são punidas

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Por Redação
Atualização:

Navios de ajuda humanitária levavam para Gaza basicamente alimentos, remédios, material de construção, roupas e brinquedos

 

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O episódio que resultou na morte de nove ativistas integrantes de uma ação humanitária internacional pode ter sido positivo na medida em que chamou atenção para a "punição coletiva em Gaza", afirma Antonio Donini, sociólogo do Feinstein International Center, da Universidade Tufts, nos EUA. Por outro lado, ele avalia que a tentativa dos cerca de 750 manifestantes pró-palestinos - entre os quais a cineasta brasileira Iara Lee - de furar o bloqueio israelense à Faixa de Gaza não pode ser entendida como estritamente humanitária, já que tinha um posicionamento político evidente. Líder de um grupo de estudos que traça estratégias para aumentar a eficiência, o profissionalismo e a segurança do empreendimento humanitário internacional, Donini diz que atos de violência contra agentes humanitários podem resultar da perda dos princípios de "neutralidade, independência e imparcialidade".

 

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Funcionário da ONU por 26 anos - parte deles como diretor do Escritório de Coordenação de Assistência Humanitária -, Donini critica a perda de autonomia das missões humanitárias da organização, cada vez mais submetidas à agenda política do Conselho de Segurança. Apesar do avanço na área, com a melhoria no treinamento e nos códigos de conduta de agentes humanitários, ainda existe o resquício da "arrogância ocidental", criando um abismo entre quem presta ajuda humanitária e quem mais precisa dela.

 

Como o senhor avalia o episódio que resultou na morte de nove ativistas pró-palestinos que tentaram furar o bloqueio israelense?

 

Preocupo-me com o 1,5 milhão de pessoas que sofrem sob o bloqueio em Gaza, que em si mesmo já é uma violação do direito humanitário internacional. Esse é o ponto de partida. Pode-se, porém, argumentar se essa flotilha era estritamente humanitária ou se nutria propósitos políticos. Claro que é uma ação política, que envolvia pessoas com os mais diversos interesses, mas é uma iniciativa válida - ao chamar a atenção da mídia para a situação dos palestinos que vivem em circunstâncias extraordinariamente difíceis. Basicamente, o mundo se esqueceu dos palestinos e o apoio a eles é muito pequeno, exceto por parte da ONU e de algumas ONGs que atuam em Gaza. Era isso que as pessoas naqueles barcos queriam comunicar à opinião pública internacional e, nesse sentido, a iniciativa foi um sucesso. Agora, o modo com que os israelenses reagiram, conduzindo mal a operação, acabou se voltando contra Israel. Há uma discussão sobre se a ação israelense era justificada ou não - uma vez que tudo leva a crer que Israel interveio em águas internacionais. Não sou um especialista em direito internacional, mas do ponto de vista humanitário o que acontece em Gaza nos últimos anos é, claramente, uma punição coletiva que viola as leis humanitárias internacionais. Acho que mesmo que viesse a ser justificada do ponto de vista legal, não o é, certamente, do ponto de vista moral. Moralmente, a atitude dos israelenses foi desastrosa. Agora, reitero: o que essas ONGs vindas da Turquia fizeram não foi uma ação estritamente humanitária, mas também política.

 

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É possível separar ajuda humanitária de envolvimento político?

 

Sim. É sempre melhor tentar se manter fiel aos princípios básicos da ajuda humanitária: independência, imparcialidade e neutralidade. O que acontece às vezes é que, para que possam ajudar pessoas em situações difíceis, as agências humanitárias dialogam com grupos que têm interesses políticos declarados. E isso pode ser perigoso. No Afeganistão, por exemplo, se uma organização que presta ajuda humanitária é vista apoiando a intervenção militar liderada pelos EUA, ela põe em risco seus funcionários assim como as comunidades em que atuam, pois será entendida pelo Taleban ou outros grupos insurgentes como não neutra no conflito. Já em desastres naturais, como o terremoto no Haiti, é possível que agências de ajuda humanitária trabalhem com autoridades locais sem que o envolvimento político seja posto em questão.

 

Na sexta-feira houve mais uma tentativa de furar o bloqueio a Gaza. Ações como essa podem se tornar mais frequentes?

 

Difícil saber. Se Israel tivesse alguma sensatez deixaria esses novos navios entrarem, mesmo que os inspecionassem na entrada. As críticas internacionais contra a atitude israelense são positivas, mas ainda não sabemos se Israel modificará sua política de bloqueio a Gaza. Achei forte e correta a resposta do secretário-geral da ONU, porém a discussão do Conselho de Segurança foi extremamente previsível e politizada, tendo assumido um tom muito brando.

 

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O sr. falou no risco que os grupos humanitários podem correr. Ataques a voluntários e trabalhadores da área têm aumentado?

 

Sim e não. Houve um crescimento, em números absolutos, de casos de violência contra agentes humanitários. Mas, em termos relativos, isso se explica pelo aumento significativo nos últimos 15 anos no número de engajados na área. Entretanto, é importante entender que os picos de violência na última década em regiões como Sri Lanka, Sudão, Somália, Iraque e Afeganistão pode ser explicado pelo fato de que, nessas crises, agentes humanitários foram vistos como tendo perdido sua neutralidade.

 

Há um aparato legal para proteger quem dá ajuda humanitária em zonas de conflito?

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Não. O que temos são as Convenções de Genebra, que dizem que atores independentes, neutros e imparciais que atuem na ajuda humanitária devem ser protegidos. Mas poucas pessoas que atacaram ou mataram agentes humanitários foram levados à Justiça. Em tese, deveria haver um sistema de leis que protegesse esses agentes.

 

Organizações estrangeiras são vistas com mais credibilidade por não estarem associadas a grupos locais?

 

Quando entrevistamos comunidades no Afeganistão e na Colômbia sobre os pontos positivos e negativos da ajuda estrangeira, constatamos, em algumas situações, que a atuação internacional é vista como mais independente e menos corruptível. Em outros casos, as agências estrangeiras não são sensíveis à realidade e à cultura regionais, e agentes humanitários do local entendem melhor esse cenário. A aceitação por parte das comunidades depende muito do profissionalismo do trabalho feito.

 

Houve uma maior profissionalização desse tipo de ajuda?

 

Nas últimas duas décadas houve um aumento do treinamento, tanto na ONU quanto nas ONGs. Em geral, agentes humanitários internacionais têm diploma universitário. Antes não tinham ou, então, eram graduados em áreas não relacionadas ao trabalho que exerciam - não era raro ver um bacharel em letras atuar como engenheiro hidráulico em algum campo de refugiados. O empreendimento humanitário tornou-se mais profissional e institucionalizado, mas estou preocupado que tenhamos perdido a flexibilidade, o sentimento de inovação e o engajamento que organizações menores com voluntários costumavam ter como, por exemplo, na crise humanitária em Biafra. Existe sempre o risco de que, com a estruturação excessiva do setor, a assistência passe a ser menos eficaz. De qualquer forma, hoje há uma percepção maior de que é essencial consultar as pessoas sobre suas necessidades físicas, de informação e de proteção. Precisamos investir mais tempo ouvindo o que têm a dizer as pessoas para as quais prestamos assistência. Ainda há um tanto de arrogância na forma com que agentes ocidentais impõem sua forma de conduzir a ajuda. Estamos aprendendo, mas o processo é lento.

 

O sr. costuma criticar a ‘marginalização de formas não ocidentais de ajuda humanitária’.

 

Se você olha para o cenário atual de ajuda humanitária no mundo, é evidente que há um estilo ocidental de conduzir sua administração - tanto de ONGs como das missões da ONU. É o jeito primeiro-mundista de fazer as coisas. Isso não permite que grandes agências humanitárias levem em conta o modo com que os locais respondem a crises. Quando acontece um terremoto no Haiti, as primeiras pessoas a prestar assistência são as autoridades locais e os grupos humanitários já atuantes na região. Isso é esquecido pelas grandes agências de ajuda que vêm depois. É verdade que, na maioria das vezes, essas agências realizam ótimo trabalho, até porque têm mais dinheiro, melhor treinamento, apoio do governo e aviões maiores. Mas isso cria uma distância entre as pessoas que estão provendo a assistência e as que a estão recebendo, o que pode criar uma relação pouco saudável de dependência.

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Houve progresso no trabalho humanitário desenvolvido pelas Nações Unidas?

 

Tecnicamente estamos melhores, temos melhores códigos de conduta para guiar o trabalho, mas a ONU não fez nenhum progresso para articular uma posição mais fortemente humanitária de agências como o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, o Unicef ou o World Food Program. A ala humanitária da ONU tinha mais autonomia. Agora, tanto no mandato do secretário-geral Ban Ki-moon, como no anterior, de Kofi Annan, o departamento de ajuda humanitária está cada vez mais submetido ao Secretariado, que é um órgão político e leva mais em consideração o que está sendo discutido no Conselho de Segurança do que os princípios humanitários.

 

Como o sr. vê o trabalho feito no Haiti depois do terremoto?

 

Acho que houve problemas no modo como esse enorme empreendimento humanitário no Haiti foi efetuado. A excessiva militarização da ação e a necessidade dos americanos de coordenar tudo criaram alguns reveses. Acho que o envolvimento de países em desenvolvimento nessas situações é positivo. E creio que esse envolvimento será mais intenso nas próximas décadas. Brasil, China e Índia tendem a desempenhar um papel mais importante na cena internacional, seja no campo econômico ou político, e também tentarão exercer maior influência nas missões humanitárias. Nos últimos 15 anos, as agências ocidentais tiveram uma vida relativamente fácil, sendo capazes de operar quando e como desejavam, de acordo com os próprios termos. Acho que isso se tornará cada vez mais difícil, pois veremos mais países como o Sudão, Sri Lanka, Mianmar ou Tailândia sendo cautelosos ao permitir que agências humanitárias façam o que bem entendam em seus territórios. Eles vão querer reafirmar sua soberania e controlá-las. E o fato de nações terem as próprias regras e regulamentos sobre o que acontece em seus limites pode ser bom. No Brasil e na Europa, por exemplo, ONGs não podem sair por aí fazendo o que querem. Por isso a regulação da sociedade civil é importante. Mas também existem países que usam o discurso nacionalista para impedir qualquer tipo de assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade. O Sri Lanka é um exemplo disso.

 

Qual tem sido o papel e o alcance do setor privado na prestação de ajuda humanitária?

 

Há fundações como a Bill & Melinda Gates, que levantam recursos para a África, mas atuam mais em questões relacionadas ao desenvolvimento e menos em questões humanitárias. Por outro lado, existem organizações privadas com fins lucrativos que, basicamente, entram em uma região complicada por um preço. O exemplo extremo disso são companhias privadas de segurança, que em geral não auxiliam nem um pouco na ajuda humanitária. Sem dúvida, há um papel a ser cumprido pelo setor privado nessas missões, mas temos que ter cuidado ao definir se esse ou aquele grupo presta assistência, de fato, humanitária. Para ser humanitário, é preciso ser capaz de demonstrar obediência aos três princípios que já mencionei: independência, neutralidade e imparcialidade. Se uma organização privada está lá para fazer dinheiro, seu interesse pode estar desfocado das pessoas que mais necessitam de ajuda. O empreendimento humanitário tem evoluído rapidamente e, há dez anos, não tínhamos essas empresas prestando assistência em áreas de conflito. Há ocasiões em que elas podem ser eficientes, mas precisam ser supervisionadas.

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