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Winston Churchill e George Orwell: opostos ideológicos contra o totalitarismo

Livro entrelaça biografias do político e do escritor que lutaram pela liberdade mesmo estando em diferentes lados do espectro político

Por Elias Thomé Saliba
Atualização:

Biografias de grandes personagens da história sempre se revelaram tarefas desanimadoras: porque não basta narrar o que uma pessoa fez no passado – é necessário mergulhar naquele tempo e deslindar um conjunto de processos mentais muito peculiares, do qual nem mesmo o biografado se mostrava ciente. Também não pode se ater obsessivamente apenas ao curriculum vitae do que foi realizado, é preciso trazer à tona aquilo que o personagem não fez: seus projetos inviáveis, seus desejos inexequíveis, suas apostas perdidas. Mais ainda: para dar alguma profundidade analítica e um pouco de perspectiva comparada à biografia, é necessário ao biógrafo distanciar-se do passado e retornar ao presente. Se tais dificuldades são inerentes às biografias de apenas um personagem, imaginem realizar uma biografia comparada de figuras como Churchill e Orwell! É o que faz, de forma prestimosa e aberta, Thomas Ricks no recente Churchill & Orwell: A Luta pela Liberdade.

O escritor George Orwell e o político Winston Churchill Foto: Zahar

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A primeira vantagem de Ricks é que ele não esconde uma certa empatia ou, pelo menos, algumas afinidades eletivas com os biografados, já que eles se tornaram tema predileto para o jornalista (que cobriu a Guerra do Iraque, a partir de 2003) quando descobriu que tanto Churchil quanto Orwell também haviam atuado quase como correspondentes de guerra: o primeiro na Guerra dos Bôeres (1899-1902) e o segundo na Guerra Civil Espanhola (1936-1939). 

Muito se escreveu e se publicou sobre os dois personagens, mas de forma bastante desigual: muito mais sobre Churchill e menos sobre Orwell. Há uma autentica biblioteca churchilliana, com centenas de publicações, nada comparável à diminuta orwelliana. Talvez porque a obra tenha sido equivocamente apropriada pelos conservadores, o fato é que Orwell não tem sido objeto de muitas pesquisas acadêmicas – embora, teses inteiras foram escritas apenas sobre os detalhes da sua ascensão póstuma, já que na última década ele tinha voltado ao centro do palco, com livros importantes de gente como Irving Howe, Christopher Hitchens e tantos outros. 

Mais do que Churchill, contudo, o estrelato póstumo de Orwell subiu tão alto a partir da década de 1980, que acabou por perturbar bastante a sua rotulagem política Ao atribuir suas próprias opiniões ao objeto de analise, Norman Podhoretz, por exemplo, acabou caindo na armadilha da crítica literária, argumentado, em 1983, que o tema essencial de Orwell eram os “rotundos fracassos da intelligentsia de esquerda”. Em sondagem criteriosa, da trajetória e da obra do escritor, Ricks mostra, ao contrário, que o eixo central foi o abuso do poder no mundo contemporâneo pela esquerda e pela direita; que a vontade de poder é decisiva, mas a vontade de obedecer também é um inimigo mortal – por isso, alguns regimes são acolhidos não a despeito de sua irracionalidade e crueldade, mas graças a elas. 

Churchill e Orwell eram bastante diferentes: o primeiro, nascido 28 anos antes, viveu quase quinze anos a mais do que o escritor. Eles jamais se cruzaram, mas se admiravam mutuamente à distância: quando chegou o momento de escrever 1984, Orwell batizou seu protagonista de Winston, e, após a sua publicação, consta que Churchill gostou tanto do livro que o leu duas vezes. Ricks emiuça as biografias completas, mas concentra-se no período crucial das duas vidas, as décadas de 1930 e 1940 - que começa com a ascensão dos nazistas e vai até o rescaldo da 2.ª Guerra Mundial. Cada um a seu modo, ambos se debateram com as mesmas grandes questões: Hitler e o fascismo, Stálin e o comunismo, os Estados Unidos e seu intuito de substituir a Grã-Bretanha como potência hegemônica. Entre os eventos mais importantes que o livro acompanha minuciosamente, o mais decisivo foi o pacto nazissoviético em 1940, que durou quase um ano e que produziu uma espécie de curto-circuito nas trajetórias intelectuais tanto de Churchill quanto de Orwell. 

Churchill possuía notável presciência da conjuntura bélica mas, como ele próprio reconhecia, “falava demais, até sem precisar”. Mas manteve aquela mais alta capacidade de todo líder político, de guardar silencio nas horas mais difíceis e cruéis dos dilemas diplomáticos: quando encontrou-se com Stálin e Roosevelt já havia sido informado da execução de 20 mil oficiais poloneses em Katyn – mas, teve que calar-se frente ao seu aliado de momento. O que não o impediu de chorar por aquele bárbaro crime, sozinho, no seu quarto, logo pós o encontro oficial. Já Orwell não era tão bom de fala quanto Churchill, mas seu programa sobre “literatura e totalitarismo”, irradiado pela BBC em maio de 1941, foi exemplar: “a peculiaridade do estado totalitarista – dizia - é que apesar de controlar o pensamento, não o fixa. Estabelece dogmas inquestionáveis, e altera-os de um dia para outro. Precisa dos dogmas, porque precisa da obediência absoluta dos seus súditos, mas não pode evitar as mudanças, que são ditadas pelas necessidades da política do poder. Autoproclama-se infalível, e ao mesmo tempo ataca o próprio conceito de verdade objetiva.” Tanto quanto Churchill e talvez de forma mais dramática do que ele, Orwell compreendia que o controle do pensamento não é apenas negativo, mas positivo: ele não apenas impede uma pessoa de expressar – ou mesmo de ter – certas ideias, mas dita o que ela deve pensar, cria uma ideologia para ela e tenta governar sua vida emocional. Desta espécie de iluminação, nasceriam dois dos seus livros mais brilhantes. 

Ricks presenteia o leitor com uma escrita fluente – e talvez tenha se inspirado nos seus próprios personagens, hábeis e extremamente fluentes na escrita. As Memórias de Churchill podem não ser grande coisa em termos de História, mas, até hoje, constituem uma narrativa literária memorável de alguém que, afinal, levou o Nobel de Literatura em 1953. Já Orwell cultivou o incrível hábito de ler em voz alta, para sua esposa, alguns de seus escritos, pelo menos até A Revolução dos Bichos. E Churchill aubscreveria aquelas célebres seis regras expostas por Orwell para uma boa redação – as quais, certamente podem ser seguidas ainda hoje: “nunca use uma palavra longa quando uma curta dará conta do recado”; ou “se é possível cortar uma palavra, corte-a sempre”; ou, ainda: “nunca use uma metáfora ou outra figura de linguagem que está acostumado a ver impressa”; e a última – de um bom senso impagável: “Infrinja qualquer destas regras antes de dizer alguma barbaridade”. 

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Após a guerra, o ministro inglês declina consideravelmente: em passagem por Monte Carlo, recebe um inesperado aperto de mão Frank Sinatra que diz “há 20 anos que eu queria fazer isso.” – e Churchill reage espantado: “mas, quem é este sujeito?”. Num almoço festivo, confunde o músico Irving Berlin, autor de hits como White Christmas, com o filósofo Isaiah Berlin e considera o músico um tanto “chato e esquisito”. Em 1946, Orwell, já tuberculoso e abatido pela morte recente da mulher, alugou uma casa nos confins de uma ilha escocesa, onde esperava morrer – mas não antes de terminar a escrita do seu ultimo livro, que ele terminou em 1948, dando-lhe um título que foi uma simples inversão daquele mesmo ano: 1984. O livro foi publicado no ano seguinte, mas ele não viveu tempo suficiente para saber como tinha sido a reação dos primeiro leitores. “As críticas foram esmagadoramente entusiásticas, mas com gritos de horror sobrepondo-se aos aplausos” – foi o comentário do New York Times, em 1949.

Churchill virou exemplo de lider político para tudo e para todos, embora suas frases e tiradas, muitas falsamente atribuídas a ele, tenham virado folclore. Ricks omite, por exemplo, que o 12 mil dólares de honorários da palestra de Churchill no Bond Club de Nova York, em 1932, foram pagos por Sir Harry McGowan, presidente de um conglomerado britânico que produzia fertilizantes, pólvora, TNT, bombas, munição e gás venenoso. Tortuosos caprichos da biografia. Seja como for, Churchil virou um imã totêmico capaz de atrair milhares de interpretações, das mais disparatadas às mais elogiosas, o que resultou em centenas de livros, uma autentica biblioteca churchilliana. Em 1999, na enquete da BBC sobre o “homem do milênio”, ele só perdeu para Shakespeare. 

Meio século antes da internet tornar-se a fonte de informações por excelência, Orwell profetizou, entre outras coisas, o que se chama, hoje, exageradamente, de “pós-verdade. O Ministério da Verdade, em 1984, agência oficial encarregada de falsificar arquivos históricos de acordo com os interesses do governo, também produzia contraconhecimento, como o célebre 2+2=5. Com o advento da era digital, Orwell virou uma espécie de celebridade, traduzido até para o tibetano e, quase sempre, na lista dos livros mais vendidos. Ricks manteve um “alerta Google” relativo ao nome “Orwell”, no período de escrita do livro, que apresentou um fluxo constante, diário, de mais de 50 citações sobre o escritor em dezenas de suportes, digitais, fílmicos ou impressos. Orwell virou uma espécie de evangelho, do qual se pode retirar qualquer coisa para bater num adversário. O livro de Ricks é não apenas necessário, mas estranhamente atual, menos pelos usos indevidos que nossa época produz, tanto de Churchill quanto de Orwell, mas sobretudo pela aposta intransigente e teimosa, de duas figuras exemplares, na liberdade de pensamento e na absoluta primazia dos fatos na busca da verdade.  *Elias Thomé Saliba é historiador, professor titular da USP e autor, entre outros livros, de Raízes do Riso

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