Zadie Smith estreia como dramaturga com peça inspirada nos 'Contos da Cantuária'

'The Wife of Willesden', primeira peça da premiada romancista britânica, está em cartaz em Londres

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Por Desiree Ibekwe
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LONDRES - Zadie Smith cresceu na esquina do Kiln Theatre, que fica na movimentada Kilburn High Road, no noroeste de Londres. Ela fez aulas de teatro quando criança e se lembra de quando um incêndio causou estragos significativos no prédio, mais de trinta anos atrás.

Agora sua relação com o teatro ficou ainda mais entrelaçada com a montagem no palco do Kiln de sua primeira peça, The Wife of Willesden, que vai até 15 de janeiro.

A escritora Zadie Smith se inspira na Mulher de Bath, personagem clássica de Geoffrey Chaucer Foto: Luke MacGregor/Reuters

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“É muito comovente, quando paro para pensar sobre tudo isso, o que não faço, porque não temos mais tempo”, disse Smith, 46 anos, numa entrevista recente no teatro. “Temos muito trabalho pela frente”.

The Wife of Willesden, que estreou na quinta-feira, é uma adaptação do “Conto da Mulher de Bath” de Os Contos da Cantuária, de Geoffrey Chaucer, transformando o prólogo e o conto numa carta de amor à Londres contemporânea (Willesden é uma região vizinha ao teatro).

Autora de vários ensaios e cinco romances, muitos dos quais – como NW e seu livro de estreia, Dentes brancos – também se passam no noroeste de Londres, Smith é uma iniciante na dramaturgia.

“Fazer tudo isso é realmente, genuinamente novo, ter colegas e essas coisas todas, usar crachá”, disse Smith, rindo, durante uma pausa dos ensaios para o almoço. “É uma fase nova na minha vida”.

Indhu Rubasingham, a diretora da peça, disse que entrou na parceria criativa com Smith com certa apreensão. Quando Smith está escrevendo um romance, “ela está sozinha, não precisa consultar ninguém”, disse Rubasingham, que também é a diretora artística do teatro. “Eu fiquei, tipo, ‘Oh, meu Deus, vai ser uma experiência totalmente diferente. Como ela vai reagir?’”.

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No final das contas, “ela tem sido incrivelmente colaborativa, de verdade mesmo”, disse Rubasingham.

The Wife of Willesden não é a primeira vez que Smith explora diferentes formas de escrita. Este ano, ela lançou um livro infantil, Weirdo, coescrito com seu marido, o romancista e poeta Nick Laird. Ela também apareceu como compositora e vocalista em ‘91’, a faixa principal do mais recente álbum da banda de Jack Antonoff, a Bleachers.

A peça tece vários fios da vida de Smith. Foi escrita como parte das celebrações da escolha do distrito local de Brent como “Bairro Londrino para a Cultura de 2020”, um projeto estabelecido há três anos pelo prefeito da capital, Sadiq Khan, que repassa recursos para determinada região da cidade realizar um programa de eventos culturais ao longo de um ano.

Smith, que assistiu às primeiras semanas de ensaios, descreveu a experiência com os atores como “ainda mais agradável” do que o processo de escrita.

“É genuinamente adorável ver os atores”, disse ela. “Eu ouço vozes na minha cabeça, mas é diferente quando as pessoas têm corpos. Elas acrescentam muito”.

Escrever a peça em si, disse Smith, foi um “dever de casa muito interessante”. Ela se lembrou de ter que traduzir Chaucer para o inglês contemporâneo durante seus estudos na Universidade de Cambridge.

“Então já fiz isso antes, mas nunca fiz de uma forma que fosse agradável para mim ou para qualquer outra pessoa”, disse ela, rindo.

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Os Contos da Cantuária, obra escrita por Chaucer no final do século 14, é uma coleção de 24 histórias contadas por um grupo de peregrinos durante sua jornada para a Catedral de Canterbury, 100 quilômetros a leste de Londres.

Um dos peregrinos é Alyson, ou a Mulher de Bath. No prólogo de seu conto, ela revela que foi casada cinco vezes e compartilha suas crenças sobre feminilidade e sexualidade, criticando o valor que a sociedade medieval dava à virgindade.

“Eu sempre gostei da Mulher de Bath. Eu li na faculdade”, disse Smith. “Tem uma energia incrível nesta personagem, é muito selvagem. Gosto de escrever mulheres assim”.

Smith queria manter tantos elementos chaucerianos quanto possível em sua adaptação, ela disse. Os contornos da história continuam os mesmos, e os diálogos da peça são escritos em dísticos.

Ela optou por fazer isso em vez de escrever uma nova peça porque vê a literatura como um “longo canal de escritores que conversam entre si através de gerações, países, épocas”, disse ela. Ela também se sentiu movida por seu amor “perverso” pelo desafio.

“A restrição é o que nos dá criatividade”, disse Smith. “Você é forçada a ir para um lado e para o outro. Isso, para mim, é a verdadeira criatividade”.

Mas The Wife of Willesden também faz desvios cruciais em relação ao texto de Chaucer. Na versão de Smith, a peregrinação é uma maratona de pub em pub e seus “peregrinos” refletem a diversidade da Londres contemporânea. Em vez dos cavaleiros, mercadores e monges de Chaucer, Smith tem personagens que você pode ver caminhando pela Kilburn High Road, como um pastor nigeriano e um oficial de justiça polonês.

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Smith traduziu o inglês médio de Chaucer para um vernáculo que ela chamou de “noroestês”, e sua “Mulher de Willesden” é Alvita, uma britânica nascida na Jamaica de cerca de 50 anos que se adorna com correntes de ouro falso, usa Jimmy Choo falso e fala numa mistura de gíria e dialeto londrino. Seu conto toma a forma do folclore jamaicano, ambientado no século 18. Assim como sua antecessora, Alvita também foi casada cinco vezes e não tem medo de falar o que pensa.

Numa troca de ideias com sua religiosa tia P sobre sexo e religião, Alvita diz a ela: “É verdade que Paul disse / Ele não queria que a gente fizesse sexo para se divertir / Mas não era bem assim: primeiro mandamento. / Tia, o que você chama de leis, eu chamo de conselho”.

Referindo-se à sua personagem, Clare Perkins, que interpreta Alvita, disse: “Ela está fazendo de tudo para buscar felicidade pessoal”.

“Ela está sempre se reinventando, está sempre lá, no meio da própria vida”, acrescentou Perkins.

A transformação da Alyson de Bath na Alvita do noroeste de Londres não foi, para Smith, um salto significativo. Em sua introdução ao roteiro, publicado pela Penguin este mês, ela escreveu: “A voz de Alyson é impetuosa, franca, atrevida, lasciva, ultrajante, não tem remorso. É uma voz que ouvi e amei a vida toda: nos apartamentos, na escola, nos parquinhos da minha infância e, depois, nos pubs da minha maturidade”.

Smith não parece pensar demais na proeminência do noroeste de Londres em sua obra. “Se você cresceu perto das ruas, isso significa muito para você”, disse Smith. “Nunca foi uma intenção quando comecei, mas acho que a vizinhança tem algo de particular. E realmente me diverte muito”.

Embora a peça seja, em certo sentido, uma celebração do cenário, para Rubasingham, também fala sobre as adversidades que a região suportou durante a pandemia.

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A covid-19 atingiu Brent de maneira particularmente forte. Em determinado momento da pandemia, o bairro teve a maior taxa de mortalidade por coronavírus da Inglaterra e do País de Gales, bem como o maior número de trabalhadores dispensados.

Rubasingham disse que a pandemia exacerbou as fraturas existentes na sociedade em torno de classe e raça. Para ela, a peça “também trata de dizer que precisamos colocar essas pessoas, essas personagens, esse mundo, no palco principal”, disse ela.

A existência da peça também é uma espécie de acidente feliz. Quando Brent venceu o edital para se tornar distrito cultural, Smith concordou em contribuir com algum trabalho. De início, ela imaginou um pequeno monólogo que pudesse ser interpretado por alguma atriz local ou publicado numa revista.

Mas saiu um comunicado à imprensa dizendo que ela estava escrevendo uma peça, “então eu tive que escrever uma peça”, disse Smith. E embora tenha sido “uma diversão incrível”, ela disse que não acredita que vá escrever outra.

“Esta é a única”, disse ela.

Este artigo apareceu originalmente no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU. 

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