Como a representação da mulher mudou da Idade Média a Hollywood

Isabelle Anchieta pesquisou a evolução das imagens femininas e detalhou sua investigação no livro 'Imagens da Mulher no Ocidente Moderno'

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Por Júlia Corrêa
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Ao percorrer as galerias do Palazzo Pitti, em Florença, a socióloga Isabelle Anchieta percebeu que havia algo de errado. Pediu para falar com a equipe do museu e questionou se não havia um equívoco na atribuição da autoria de uma pintura à artista Artemisia Gentileschi. Foi então que a responsável pelo museu lhe contou que, naquela semana, um grupo de especialistas já havia identificado o erro.

Como Isabelle notou tal engano? Observando imagens. Muitas imagens. Por oito anos, ela dedicou-se a uma impressionante pesquisa sobre as mulheres no Ocidente, que seria sua tese de doutorado defendida na USP e acaba de ser transformada em livro com edição luxuosa da Edusp. Mais precisamente, três livros.

'Judite Decapitando Holofernes', de Artemisia Gentileschi Foto: MUSEU DE CAPODIMONTEE

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Imagens da Mulher no Ocidente Moderno está dividido em três volumes de distintos recortes. O primeiro tomo estabelece um rico diálogo entre as imagens das bruxas da Idade Média e as das índias tupinambás canibais; o segundo volta-se às diferentes representações de Maria e Maria Madalena; já o último aborda as transgressões das estrelas de Hollywood.

Isabelle fez questão de ver de perto a maior parte das imagens analisadas, entre obras de arte, livros e panfletos. Nessa verdadeira imersão, procurou identificar questões como a relação das imagens das mulheres com as disputas sociais por reconhecimento. Dessa investigação, resulta o que a pesquisadora chamou de “individumanização”. Isto é, um processo que engloba desde a luta das mulheres para humanizar-se – desvencilhando-se dos estereótipos de bruxas ou santas – até o desejo de serem associadas a uma personalidade inconfundível. Na entrevista a seguir, Isabelle conta como buscou traçar a história social dessas imagens.

A imagem das índias tupinambás liderando rituais canibais influenciou o surgimento dos caldeirões nas representações das bruxas europeias Foto: Hans Baldung

Seu livro tem um recorte histórico extenso. Quais foram os principais desafios que essa escolha impôs, considerando a pesquisa in loco? Eu já estava fazendo a pesquisa quatro anos antes de entrar no doutorado e, na Universidade, percebi a dificuldade da academia com esse tipo de investigação mais ampla. Só que elas são necessárias, pois, quando olhamos as coisas na longa duração, nossa compreensão é ampliada. Assim, fui estabelecendo a correlação entre as imagens, vendo como uma contamina a outra, como elas sobrevivem no tempo e como se inscrevem nesse processo de crescente humanização e individualização da mulher no Ocidente moderno. 

Como evitar o reducionismo ao optar por uma análise sociológica das imagens? Ora as análises caíam muito para uma história da arte, com um tecnicismo que não era meu objetivo, ora caíam para uma análise sociológica, sem os aspectos formais que também são importantes para a compreensão. Foi difícil construir esse “meio lugar”, um entendimento sobre a sociologia da imagem, não da arte. Eu trabalho com imagens que nem sempre tinham uma função artística. Por isso, a ideia de ampliar para a sociologia da imagem me pareceu mais interessante. Busquei me ater aos aspectos estéticos sem me descolar dos aspectos sociais que movimentam as imagens – sentimentos, contradições. Fazer isso foi muito delicado: cada imagem te ensina a analisar, demandando um método diferente. 

Sua pesquisa aponta que as mulheres não foram agentes passivos.  Tinha uma astúcia das mulheres, mesmo. Essas imagens já carregavam uma certa ambiguidade. Porque os homens não estavam representando uma mulher absolutamente passiva, que eles não temiam ou que consideravam inferior. Muito pelo contrário: tentaram construir essa estereotipia de uma mulher domesticada, exatamente porque ela não era assim. A imagem das bruxas é precisamente isso: a diabolização e a marginalização de uma mulher que foge às regras, com a tentativa de controle da sexualidade e de uma pedagogia da boa esposa. Só que a realidade não era essa. Eu mostro isso, por exemplo, na sociedade da corte: mesmo sem poder escolher seus parceiros – o casamento satisfazia arranjos de poder –, as mulheres tinham uma sexualidade livre, desde que mantendo as aparências. Os estereótipos foram tentativas de controle. E as imagens trazem essa ambiguidade entre a tentativa de controle e a astúcia feminina. Entre as freiras, havia muitas ex-prostitutas em busca de redenção. Atraídas pela imagem de Maria Madalena – padroeira de muitos conventos –, elas também sabiam usar essa imagem contra abusos. 

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Muitas das imagens analisadas foram produzidas por homens, mas há também o caso da produção das próprias mulheres, como a italiana Artemisia Gentileschi. Como você vê a diferença nas produções masculinas e femininas? É uma polêmica. A análise que fiz de Artemisia foi emblemática para mim. Trata-se de uma mulher com uma trajetória muito dolorosa. Ela sofre um estupro, e as análises de sua obra tendem a projetar esse acontecimento brutal em suas telas: são mulheres muito violentas com os homens, como a imagem bíblica de Judite decapitando Holofernes. Quando comparamos sua produção com a de Caravaggio, no entanto, percebemos que ela não está fazendo algo radicalmente distinto do que outros grandes pintores faziam, mas no caso dela, e creio que isso tem a ver com o fato de ser mulher, atribui-se uma dimensão muito autobiográfica à obra. Óbvio que há um atravessamento biográfico, mas é muito mais algo da grande pintura da época. Eu não acredito que haja uma pintura de mulheres e uma de homens. Essas marcações são pobres. Ser mulher é uma informação, mas não é toda a informação. 

Percebe-se essa abordagem ao tratar das mútuas contaminações no processo de formação das imagens das índias no Novo Mundo e das bruxas na Europa. O processo nunca é unívoco ou unidirecional.  Exato. As imagens dialogam entre si. Por isso é legal trabalhar com séries de imagens que vão descortinando essas relações. Eu só consegui provar essa mútua contaminação entre as imagens das índias tupinambás e a iconografia das bruxas observando repetições de alguns elementos e depois a introdução de novos a partir do contato com aquela imagem. Antes do conhecimento das tupinambás na Europa, as bruxas só carregavam pequenos potes nas mãos, dos venenos. Depois de 1557, quando as imagens do Hans Staden passam a circular na Europa, mostrando detalhadamente rituais canibais indígenas e como as mulheres tinham protagonismo no preparo da vítima, a iconografia das bruxas passa a apresentá-las com caldeirões. 

Falando nas índias e bruxas, você analisa no livro a circulação de panfletos, com o advento da imprensa, que serviram de veículo de propagação desses estereótipos. Imediatamente pensei nas fake news de nosso tempo. Faz sentido essa associação? Faz bastante sentido. Esses panfletos são uma chave de interpretação para entender o que é estereotipia, o que é central para meu livro. Até o termo ‘estereotipia’ vem da imprensa – a repetição de uma impressão que vai perdendo a qualidade da imagem. Só em 1922 Walter Lippmann usaria esse conceito da estereotipia para falar dessas imagens mentais, de si e dos outros, antes do conhecimento das coisas. Ou seja, uma imagem que assume uma forma comunicativa fácil, cuja identificação é rápida, constituindo uma síntese de um longo processo. Isso se deu com o estereótipo das bruxas, mas também com a Virgem Maria, especialmente através da seriação das Madonas que se repetem em tantas Igrejas. 

'Virgem e Criança Rodeados por Anjos', de Fouquet, dessacraliza imagem de Maria Foto: Museu Real de Belas Artes da Antuérpia

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Da imagem maternal e caridosa de Maria até sua humanização, passando pela afirmação e negação de sua sexualidade, quão controlado pode ser o processo de construção dessas figuras?  Maria começa com uma imagem absolutamente orquestrada pela Igreja, identificada com a instituição – essa mulher no trono com o menino Jesus, que pode gerar e manter-se virgem, sinalizando que a Igreja tudo pode –, mas depois escapa ao controle institucionalizado. Quando a burguesia italiana passa a patrocinar uma figura mais maternal, ela muda em relação ao que era feito no âmbito exclusivo das catedrais, com Maria amamentando o menino Jesus, por exemplo. Veja o caso de uma imagem específica: Carlos VII, rei da França, manda Jean Fouquet pintar o retrato de sua amante, Agnés Sorel (considerada a primeira amante “oficial” de um rei), mas usa a desculpa do motivo de Maria amamentando, obtendo um resultado profano: aquela bela mulher com o seio nu para apreciação do amante. Não por acaso, a Igreja intervém e tenta proibir essa representação, dando preferência à imagem da Pietà – aquela mãe que sofre a perda do filho. 

As estrelas de Hollywood são a ponta final do processo que você chamou de individumanização. Em que medida esse conceito está ligado à transgressão operada por essas mulheres? Elas só podem assumir esse projeto autobiográfico a partir de um conjunto de transgressões. O Gilberto Velho diz que o amor foi a primeira escolha da mulher. A primeira revolução sexual feminina, para mim, se dá do século 17 para o 18, quando as mulheres podem escolher o parceiro com quem vão se casar. Mulheres românticas, que foram representadas de modo melancólico por artistas impressionistas como Berthe Morisot e Mary Cassatt, já podem escolher o parceiro, mas não se divorciar. As stars é que vão romper esse espaço. Nos primeiros filmes do século 20, mulheres como Mary Pickford e Theda Bara já começam a legitimar a transgressão. Theda Bara traía, envolvia-se com homens casados, levava-os à ruína, ao suicídio, e não se importava. Era uma Maria Madalena sem arrependimento. Sua fama se deu por isso. É uma inversão valorativa. Se, para a bruxa, isso a levava à fogueira, agora ela vai ao estrelato. O cinema, mais que representar, promove a modernidade.

Mary Pickford, uma das primeiras stars de Hollywood Foto: Edusp

IMAGENS DA MULHER NO OCIDENTE MODERNO AUTORA: ISABELLE ANCHIETA EDITORA: EDUSP 696 PÁGINAS R$ 136 (3 VOLUMES)

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