Livro compila notícias curtas do cotidiano parisiense da Belle Époque

Mais de mil notas escritas por Félix Fénéon desvelam o absurdo urbano diário

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Por André Cáceres
Atualização:

“Vende-se: sapatinhos de bebê. Nunca usados.” Essa minúscula tragédia equivocadamente atribuída a Ernest Hemingwayjá figurava emclassificados publicados na infância do escritor, na primeira década do século 20. A época, frutífera para o chamado jornalismo de faits divers, gerou uma abundante crônica urbana no Ocidente. No Brasil, o melhor exemplo é João do Rio, autor d'A Alma Encantadora das Ruas. Um representante desse tipo de reportagem foi Félix Fénéon (1861-1944), legítimo flâneur cujas notícias curtíssimas publicadas no periódico Le Matin revelam-se um relato cáustico do cotidiano parisiense. Um compêndio de 1.210 dessas narrativas compõe o livro Notícias em Três Linhas, lançado pela editora Rocco, traduzido e organizado por Adriano Lacerda e Marcos Siscar.

Retrato de Félix Fénéon pintado por Paul Signac em 1890 Foto: MoMA

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Embora fosse italiano de Turim, Fénéon respirou Paris. Editou, a pedido de Gustave Kahn, as Iluminações de Arthur Rimbaud, versos que percorreram um árduo caminho de mais de dez anos das mãos de Verlaine e às de Fénéon. Publicou obras de James Joyce na França. Como crítico de arte, cunhou a expressão neoimpressionismo em 1886, descobriu Georges Seurat e foi amigo de Paul Signac. O agitador cultural, de alguma forma, encontrou tempo para ser também um ativo anarquista – pelo menos até 1894, quando foi acusado de provocar um atentado em frente à sede do Senado francês. Inocentado, vejam só, tornou-se jornalista. 

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Dirigiu a Revue Banche, em cujas páginas cedeu espaço a Marcel Proust, André Gide e Claude Debussy. A revista sobreviveu até 1903, não mais. No jornal Le Matin, em 1906, exatos cem anos antes da criação do Twitter, Fénéon começou a cozinhar a banalidade das ruas de Paris em haicais jornalísticos que não passavam dos 135 caracteres. “As pulgas do vizinho Giacolino, amestrador, incomodavam o Sr. Sauvin. Ao tentar apossar-se da caixa onde estavam, levou dois tiros.”

Alguns mistérios sem solução publicados por Fénéon poderiam muito bem originar um romance policial de Conan Doyle, Bioy Casares ou Agatha Christie: “Guarnecido de um rabo de rato e ilusoriamente carregado de fino grés, um cilindro de flandre foi encontrado na rua de l’Ouest.” 

Da mesma forma que o conto apócrifo de Hemingway com suas seis fatídicas palavras, as notícias de Fénéon retiram da matéria-prima da realidade o extrato dos dramas humanos atemporais. A efemeridade dos ocorridos, mediada pela distância de 112 anos, fala sobre a forma com que a sociedade lida com a violência. Boa parte do impacto da bofetada com que os pitorescos fatos colhidos dos mais diversos círculos sociais atingem o leitor provém do espaço diminuto no qual eles são sintetizados. “O Sr. O. Calestroupat conheceu, na câmara, uma dama sem desdém. Noite galante; triste manhã: 11.250 francos surrupiados.”

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Interligadas, algumas notas do livro indicam um erro de apuração de Fénéon: “A enfermeira Élise Bachmann, que estava de folga ontem, manifestou-se louca em via pública”, escreve, e logo se retrata: “Presa em via pública, certa louca apresentava-se abusivamente como a enfermeira Élise Bachmann. Esta última está em perfeita saúde.” 

Com sua visão política, Fénéon não poderia deixar de cobrir os movimentos trabalhistas, mas sem perder sua verve irônica: “Os grevistas de Ronchamp (Haute-Saône) jogaram na água um operário que teimava em trabalhar.” Muito antes da 1.ª Guerra Mundial, o jornalista já denunciava as mazelas do nacionalismo e o perigo bélico que a França corria: “O sexagenário Gallot, de Saint-Ouen, foi detido quando se dedicava a transmitir a alguns soldados seu antimilitarismo.”

Essas pílulas em tom telegráfico não eram assinadas. Seu anonimato só foi desvelado por Camille Plateel, companheira que guardou o material até a década de 1940. O teor jornalístico em si das coberturas não era tão relevante, cobrindo em sua maioria causos curiosos (“Derrotando o campeão francês, que conseguiu dançar apenas 14 horas, o Sr. Guattero tornou-se vencedor, à meia-noite e 27, do concurso de valsa”), crimes passionais (“O cantor Luigi Ognibene feriu com dois tiros, em Caen, Madelon Deveaux, que não desejava ver monopolizada sua beleza.”), assassinatos violentos, acidentes grotescos, uma ou outra pérola política (“O regulamento do prefeito de Angers sobre procissões não permite que saiam às ruas bandeiras sindicais, cantos não litúrgicos e bengalas.”). 

À luz da perspectiva histórica, a escrita de Fénéon se desnuda. O que se lê em Notícias em Três Linhas não são os acontecimentos externos, reais, palpáveis, que ficaram obscurecidos, mas sim o texto, o ineditismo, a forma inusitada de contar as frivolidades comezinhas do dia a dia. “Com a igreja de Miélin (Haute-Saône) cercada de barricadas, os fiéis escalam as janelas para ir à missa.” Quando se debate a pertinência de considerar o jornalismo uma forma de arte ou um gênero literário elevado, os autores mais citados serão sempre os baluartes do new journalism dos anos 1960, como Gay Talese, Janet Malcolm, Truman Capote, Tom Wolfe, ou, anteriores a eles, John Hersey, John Reed e o já citado João do Rio, que complementariam o panteão. Félix Fénéon, todavia, mostra que não é necessário alongar uma reportagem por páginas a fio ou perfilar magistralmente um Frank Sinatra resfriado sem sequer conversar com ele. Leitura saborosa, Notícias em Três Linhas prova que até o mau jornalismo, com um século de distância, pode originar boa literatura.

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