PUBLICIDADE

Nova Orleans completa 300 anos como um polo literário

Cidade é cenário de livros importantes e foi morada de escritores como Faulkner e Tennessee Williams

Foto do author Redação
Por Redação
Atualização:

Bêbado, despenteado e arrependido, Stanley Kowalski joga a cabeça para trás e berra para sua esposa: “Stellahhhhh!” Todos os competidores de março se reúnem na Jackson Square, Nova Orleans, para recriar essa cena de Um Bonde Chamado Desejo – arrancando suas camisetas, derramando o conteúdo de suas garrafas de bolso sobre si mesmos e caindo de joelhos. A competição é o final de um festival que homenageia o autor da peça, Tennessee Williams, que chamou a cidade de sua casa espiritual.

Cena do filme 'On The Road', inspirado no livro de Jack Kerouac Foto:

PUBLICIDADE

A dez minutos de lá a pé, na Canal Street, há uma estátua de bronze de um homem encorpado com um chapéu de caçador de cervos. Ela retrata Ignatius J. Reilly, o herói misantropo de Uma Confraria de Tolos; para Ignatius, Nova Orleans é uma morada de “bruxas, pessoas que jogam lixo no chão e lésbicas”, mas o mundo lá fora é uma “área abandonada”. As pessoas vêm à estátua para homenagear essa voz incorrigível de Big Easy (um nome para New Orleans), e ao seu criador, John Kennedy Toole, que cometeu suicídio antes de seu livro ser publicado.

Nova Orleans faz 300 anos este ano. Ela tem celebrado sua história literária há 100 deles – as visitas culturais foram oferecidas já na década de 1920 –, mas especialmente desde os anos 1990, quando a estátua de Ignatius foi erguida e a competição de gritos foi inaugurada. Os moradores se vestem como seus personagens fictícios favoritos durante o Mardi Gras e assistem a bailes de vampiros que acenam para os romances de Anne Rice no Halloween. Alguns dos hotéis são atrações literárias por direito próprio. O Monteleone apareceu em dezenas de histórias; seu Carousel Bar era um dos lugares favoritos de Truman Capote e Eudora Welty. O mesmo vale para algumas livrarias, como a Faulkner House Books, em Pirate’s Alley, batizada assim em homenagem a William Faulkner, um ex-morador. Nova Orleans ajudou a transformá-lo de poeta obscuro em ganhador do Nobel, assim como transformou Thomas Williams em Tennessee.

Se a transformação é um dos temas que permeiam a literatura da cidade, outra é a diversidade. Como muitos portos, Nova Orleans sempre foi um caldeirão: franceses, espanhóis, crioulos, escravos africanos, índios americanos, pessoas de cor livres e ondas de imigrantes misturados, nas ruas e na página. Les Cenelles, a primeira antologia de poesia de negros americanos, foi publicada lá em 1845. Como a literatura migrou do francês para o inglês após a compra da Louisiana, os romancistas usaram as nuances da comunidade para explorar as desigualdades raciais no sul em livros como The Grandissimes (A História da Vida Crioula), de George Washington Cable, publicado em 1880. Kate Chopin explorou os limites dos papéis e desejos femininos na sociedade crioula do século 19 em The Awakening (O Despertar, em tradução livre, 1899).

Na década de 1920, Double Dealer, uma revista literária, foi lançada em Nova Orleans como uma voz para a literatura modernista e para mostrar que o Sul não era um fim de mundo cultural. Incluía a escrita afro-americana e feminina e os primeiros trabalhos de Faulkner e Ernest Hemingway. Tendo como fundo uma trilha sonora da era do jazz, autores fixaram residência na romântica decadência do French Quarter; o escritor Sherwood Anderson abriu salões de estilo parisiense para pessoas como Carl Sandburg e Gertrude Stein. Em sua introdução a New Orleans: The First 300 Years (Nova Orleans: os Primeiros 300 Anos), Lawrence Powell descreve como essa Dixie Bohemia inaugurou “uma tradição de comunidade literária que pouco se dispersou”.

Nas décadas do pós-guerra, a geração Beat passou por lá: Jack Kerouac imortalizou sua estada com William Burroughs e sua visita ao French Quarter em On the Road (1957). A cidade “no fundo desbotado da América”, escreveu Kerouac, ficou “gravada em nossos cérebros” antes de sua festa chegar lá. Em The Moviegoer (O Frequentador de Cinema, em tradução livre), romance existencial de Walker Percy de 1961, o narrador veterano de guerra, Binx Bolling, perambulou por Nova Orleans e seus cinemas em busca de significado.

Os velhos tempos da pirataria, das plantações e do antigo bairro da luz vermelha inspiravam a fantasia histórica; os grandiosos cemitérios e praticantes do vodu nutriam contos do sobrenatural, de bruxas e vampiros. Enquanto isso, as ruas violentas dos últimos dias cultivavam personagens como Dave Robicheaux, o perturbado protagonista dos mistérios de James Lee Burke. Em 1993, Robert Olen Butler ganhou um Pulitzer por A Good Scent from a Strange Mountain (Um Bom Perfume de uma Montanha Estranha), coleção de histórias sobre imigrantes vietnamitas na Louisiana.

Publicidade

Em 2005, o furacão Katrina atingiu os diques e a maior parte de Nova Orleans foi inundada. As pessoas perderam tudo. Mas, como Susan Larson, autora de The Booklover’s Guide to New Orleans (O Guia do Amante dos Livros de Nova Orleans, em tradução livre), reconta que “uma nova energia literária emergiu do fato de que todo morador de Nova Orleans tinha uma história”. Escrever era uma forma de terapia cívica. Dave Robicheaux voltou a combater o crime pós-Katrina. Novos personagens foram irrevogavelmente alterados pela tempestade, como T.C. no livro de Margaret Wilkerson Sexton, A Kind of Freedom (Uma Espécie de Liberdade, em tradução livre). O Katrina se tornou um prisma por meio do qual cada um reflete sobre as questões que sempre preocuparam os cronistas da cidade: raça, história, loucura, identidade, sobrevivência e morte.

Hoje, como no passado, os escritores são atraídos pela liberdade, exuberância e tolerância da excentricidade. Nova Orleans os abraça enquanto estão vivos e os reverencia quando se vão; escritores, por sua vez, ajudaram a impregnar sua lenda na imaginação dos Estados Unidos e do mundo. Mas se o material é tão rico como sempre, o desafio de retratá-lo é acentuado. 

É difícil melhorar a visão de carnaval de Alice Dunbar-Nelson de 1895: “Um sonho enlouquecido de cor e melodia e fantasia que enlouqueceu em uma bolha efervescente de beleza que muda e se transforma e passa como um caleidoscópio diante dos olhares perplexos.” / Tradução de Claudia Bozzo

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.