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Romance experimental de Samuel Beckett, 'Como É' ganha nova edição

Livro radicaliza a obra do autor, laureado com o prêmio Nobel de Literatura

Por Paulo Nogueira
Atualização:

O irlandês Samuel Beckett (SB), Nobel de literatura e de quem a Iluminuras lança Como É, é difícil, talvez até abstruso? Bem, confidencialmente, não será talvez um autor para se ler na praia, entre um frescobol e um picolé. Como disse J. M. Coetzee, quando se trata de SB menos o lemos do que o deciframos frase a frase. Mas é um esforço meritocrático, que compensa à beça o tenaz. Pois a obra do irlandês comunica algo que não é bolinho de transmitir – uma epifania da vida e da morte.

O escritor e dramaturgo irlandês Samuel Beckett Foto: Iluminuras

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Poeta, romancista, contista, dramaturgo, tradutor (desde Breton e Eluard à poesia mexicana) e crítico, aos 25 anos SB escreveu uma monografia sobre Proust, que exigia familiaridade com os sete volumes proustianos, e que talvez falasse mais do irlandês que do francês: “Proust explica uma problema a fim de demonstrar que esse problema é inexplicável”.

Para Salman Rusdhie (num dos prefácios da magnífica edição das Obras Completas de Beckett publicada pela Grove Press, comemorativa dos 100 anos de nascimento do escritor), o melhor de SB estava nos romances (mas pode ser Rushdie puxando a brasa para a sua sardinha). SB aplicou uma meia-sola (ou quem sabe uma perna de pau) na linguagem do romance com a trilogia Molloy, Malone Morre e O Inominável. Ao se mudar de Dublin para Paris conheceu James Joyce, por quem arriou os quatro pneus e de quem virou secretário. A casa dos pais de SB em Dublin ficava a meio caminho entre o lar em que Oscar Wilde cresceu e o hotel Finn, onde trabalhava Nora Barnacle, depois mulher de Joyce (10 de junho de 1904, dia do primeiro encontro do casal virou o Bloomsday, a data em que se desenrola o Ulysses, e o nome do hotel figura no título da última obra de Joyce, Finnegans Wake). A filha de Joyce, Lucia, se apaixonou por SB e, quando não rolou, surtou de tal forma que se consultou com Jung e acabou seus dias num sanatório.

Para superar a angústia da influência, SB virou Joyce do avesso: onde este adicionava, aquele subtraia – sai o work in progress e entra o work in regress. Beckett é um minimalista austero, um mestre da parcimônia e da elipse quase taciturna, como transparece até nos títulos de suas obras: O Inominável, Texts for Nothing, etc. O próprio SB entregou o ouro: “Quanto mais Joyce sabia, mais ele podia. Ele tendia à onisciência e à onipotência. Já eu trabalho com a impotência e a ignorância, naquela zona que os artistas descartam como lixo.”

Beckett escrevia indiscriminadamente em inglês e francês, e se traduzia para estas línguas. E comentava que depois não sabia qual era o original e qual a versão. Talvez por isso, recusou a tradução que Paul Auster lhe propôs dos poemas que escreveu em francês.

SB ganhou o Nobel em 1969. Tinha com a Irlanda um relação tão ambivalente quanto Joyce, e pediu a seu editor francês que recebesse o prêmio, pois estava de férias em Tunes com sua mulher Suzanne. Esta, adivinhando os chiliques que a fama traria ao marido antissocial, descreveu a honraria como “uma catástrofe”. Aliás, a forma como ambos se conheceram é bem beckttiana: em 1938, ele foi esfaqueado em Paris por um estranho total. Quando agonizava ensanguentado no chão, ela – também uma estranha total – passou pela calçada e o levou para o hospital. Viveram juntos 51 anos, até a morte de SB, em 1989.

Como É, de 1961, radicaliza a trilogia romanesca de Beckett: daí o título original francês, Comment c’est, um trocadilho que combina “como é” e “começar”. Desponta uma criatura atrelada por razões desconhecidas a uma voz narrativa, contida num corpo confinado a um espaço que lembra o inferno de Dante, e condenada a se exprimir num determinado lapso de tempo, para tentar dar algum sentido às coisas. Recorda a ideia de Heidegger sobre o ser humano lançado sem qualquer explicação numa existência governada por regras absurdas.

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Mesmo na incoerência de O Inominável há alicerces familiares, como Paris. Em Como É, SB chuta (ou dá uma voadora) no balde da verossimilhança: o ambiente é metafórico. Já foi dito que aqui o cenário é tão decisivo ou irrelevante quanto a cor única nos fundos dos quadros de Francis Bacon.

Bom (o narrador) é um ser rastejando nas trevas através de uma lama gorgolejante, arrastando um saco de provisões enlatadas, torturando e sendo torturado por outros seres com seus preciosos abridores de lata. Há um segundo personagem, Pim, contra o qual o narrador se define. O romance, classificado por alguns como poema em prosa – e que assume a forma de fragmentos sem pontuação, separados por espaços na página, quase como falas teatrais – é dividido em três partes: antes de Pim, com Pim e depois de Pim. A prosa, espartana e desidratada mas não isenta de um “pathos” febril, não explica o impacto do passado no presente.

Para o bem ou para o mal, SB é um dos escritores mais “filosóficos” da literatura universal. Para muitos, bombou com a notoriedade de Godot, que poderá ou não chegar mas por quem de qualquer forma esperamos, ocupando o tempo o melhor que conseguimos. Quando um repórter que acompanhou todos os ensaios da primeira montagem e na véspera da estreia lhe perguntou: “Seu Beckett, mas afinal quem diabos é Godot?” – o autor deu de ombros: “Ah, meu filho, se eu soubesse tinha dito na peça.”

Tema central de SB é a morte, que Henry James chamou de “the distinguished thing” (a coisa distinta), mas que para Beckett é um troço nojento, feito de impotência, humilhação e flatulência. Como Malloy diz: “É na tranquilidade da decomposição que me lembro da longa e confusa emoção que foi a minha vida, e que a julgo, como dizem que Deus nos julgará, e não com menos impertinência”. Por isso, e embora patibular, a obra de SB é mais sobre a vida do que sobre a morte, a incessante e vã batalha da existência contra a sua sombra.

Por essas e outras, retiro o que eu disse: Beckett é para se ler na praia, sim. Mas só se for uma praia fluvial, e dos rios Caronte, Lete ou Estige.

*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE 'O AMOR É UM LUGAR COMUM' (INTERMEIOS)

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