'Babel-17', de Samuel Delany, trata do fracasso da comunicação

Uma poeta é convocada a decifrar um idioma alienígena nesse clássico da ficção científica

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Por André Cáceres
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Em 1977, o missionário americano Daniel Everett foi à Amazônia com o intuito de traduzir a Bíblia para a língua da tribo Pirahã e convertê-la ao cristianismo. Após anos convivendo com os índios e aprendendo sua cultura, foi ele quem se converteu ao ateísmo, muito em função das peculiaridades do idioma pirahã. Esse episódio é ilustrativo de como aprender uma língua pode influenciar a visão de mundo de uma pessoa – tema de Babel-17 (1966), do americano Samuel R. Delany, lançado pela primeira vez no Brasil pela editora Morro Branco em edição conjunta com a novela Estrela Imperial, parte do mesmo universo literário. 

O escritorSamuel R. Delany, autor de 'Babel-17' Foto: Alex Woodward

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“A maioria dos livros didáticos diz que a língua é um mecanismo para expressar o pensamento”, diz a protagonista Rydra Wong em Babel-17. “Mas língua é pensamento. O pensamento é informação com forma. A forma é a língua.” Wong é uma poeta com habilidades telepáticas, cuja obra é lida e apreciada em todas as galáxias conhecidas. Em meio a uma guerra estelar, ela é convocada para decifrar um código misterioso transmitido momentos antes de sabotagens e ataques inimigos.

Wong parte, então, em uma viagem tanto exterior quanto interior, pela galáxia e pela gramática, que lhe será reveladora. À medida que Wong desvenda as mensagens transmitidas pelos oponentes, ela percebe não se tratar de um código, mas sim de um idioma completo. Quanto mais ela o aprende, mais abstrata vai se tornando a narração. As tensões poéticas do livro se acentuam nesses momentos com longos fluxos de consciência. O metabolismo se acelera quando ela raciocina nessa língua. Sua percepção da realidade se altera ao ponto de o tempo parecer passar mais devagar.

Em um desses momentos de ruptura narrativa, Wong pondera haver, no finlandês, 16 tipos de flexão de substantivos. “Estranho, para algumas línguas basta singular e plural. As línguas indígenas norte-americanas sequer conseguiam distinguir número. Exceto a língua sioux, na qual havia plural apenas para objetos animados. O salão era redondo e morno e suave. Não tinha como se dizer morno em francês. Havia apenas quente e tépido. Se não há nenhuma palavra para algo, como se pensa nesse algo?” No trecho em que ela conhece um homem cujo idioma não tem “eu” nem “você”, Wong se pergunta: “O que era possível dizer para um homem que não conseguia dizer ‘eu’?”, reflete ela antes de tentar, em uma bela cena, explicar a ele o significado dessas palavras.

Samuel Delany, o mais relevante autor negro e gay da ficção científica contemporânea, talvez por sua condição de oprimido, sabe muito bem o que é ser incompreendido. A impossibilidade de comunicação plena é um dos mais recorrentes e fascinantes temas do gênero. Enquanto histórias com ETs tendem a focar o aspecto bélico de uma possível invasão, alguns dos livros mais inventivos se preocupam justamente com a incomunicabilidade entre seres fundamentalmente diferentes. 

O escritor polonês Stanislaw Lem abordou essa questão em duas de suas obras mais importantes. Em Solaris (1961), a radical incompatibilidade entre os organismos de um ser humano e de um oceano senciente é o ponto de partida para a jornada filosófica, espiritual e autodestrutiva empreendida pelo psicólogo Kris Kelvin. Já A Voz do Mestre (1968) narra a tentativa frustrante de um time de cientistas de decifrar uma mensagem captada por meio de ondas de rádio de outro canto da galáxia.

Nossa abissal incapacidade de compreender uma espécie que difere de nós em essência está no cerne de Piquenique na Estrada (1972), dos irmãos Arkady e Bóris Strugatsky, e Encontro com Rama (1973), de Arthur C. Clarke. O que todas essas obras, incluindo Babel-17, têm em comum é o fato de buscar na ideia do extraterrestre uma característica inerente à história humana. Afinal, para todos os efeitos, os conflitos travados entre o Império Romano e os chamados “povos bárbaros” ou o desembarque dos colonizadores europeus na América habitada por centenas de tribos indígenas configuram histórias de primeiro contato entre alienígenas, na acepção original da palavra.

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Samuel Delany explora essa incomunicabilidade por meio de uma trama que antecipa vários aspectos do conto História da sua Vida (1998), de Ted Chiang, que deu origem ao filme A Chegada (2016), de Denis Villeneuve: alienígenas tentam transmitir uma mensagem à humanidade enquanto generais coçam os dedos para bombardear suas naves, e a linguista Louise Banks não apenas evita o conflito, mas muda o funcionamento de seu próprio cérebro ao aprender o idioma dos supostos invasores. Ou, como Rydra Wong diz em Babel-17, “quando você aprende outra língua, você aprende a maneira como outras pessoas veem o mundo”.

Assim como na obra de Ted Chiang, Samuel Delany trabalha com uma extrapolação da relatividade linguística, uma mescla das teses propostas por antropólogos e linguistas como Edward Sapir, Franz Boas e Benjamin Lee Whorf. De acordo com a relatividade linguística, em uma simplificação grosseira da teoria, o idioma falado por uma pessoa influencia – ou determina, dependendo do autor – sua visão de mundo e até mesmo sua percepção da realidade objetiva ao redor. Embora popular na primeira metade do século 20, essa ideia foi posta em xeque por estudiosos como Noam Chomsky e Steven Pinker, que creditam a formação da linguagem a um componente genético. 

Para além dos debates científicos, Babel-17 é um tratado sobre a incomunicabilidade. Em uma das primeiras cenas, um general se encontra com a poeta para tratar da decodificação do idioma e se sente atraído por ela, mas é incapaz de se expressar: “Ah, as coisas que deveriam ter sido ditas. Fui brusco, militar, eficiente (...) Meu Deus, pensou ele, quando o frio atingiu seu rosto, tudo isso dentro de mim e ela não sabe! Não comuniquei nada!” Ao notar os sentimentos do general, Wong lamenta não ter transmitido reciprocidade: “Todos os mal-entendidos que mantêm o mundo em pé e as pessoas separadas tremeram diante de mim de uma só vez, esperando que eu os desfizesse, os explicasse, e eu não consegui”. Babel-17 é mais relevante hoje do que quando foi escrito, pois nossos tempos são marcados pela falência do diálogo.

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